Por Jornal de Pernambuco
Em geral, quando pensamos em histórias em quadrinhos, tomamos como parâmetro o romance ou a peça de teatro – nossa referência é a narrativa. Fernando Pessoa e outros Pessoas, de Fazzolari e Guazzelli, é obra que nega essa tradição. Ao transformar criações do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) em uma HQ, a dupla não tenta forçar uma narrativa. Em vez disso, propõe choques entre imagens, ou entre palavra e imagem, que constroem uma lírica análoga à de Pessoa, paralela a ela.
Para fazer isso, não foi necessária qualquer estrutura mirabolante. Fernando Pessoa e outros Pessoas tem três blocos principais, construídos sobre textos de três dos mais famosos entre as dezenas de heterônimos do poeta – Alfredo de Campos (Tabacaria), Bernardo Soares (Livro do desassossego) e Alberto Caeiro (O pastor amoroso). Abrindo o volume e entre os três blocos estão fragmentos menores do poeta (ou dos poetas, que sobre Pessoa sempre se deve falar no plural). É na maneira como essa estrutura chega a nós que repousa a singularidade do álbum.
Em primeiro lugar, o ilustrador Guazzelli busca, para cada uma das três partes, um estilo próprio. Da mesma maneira como cada heterônimo de Fernando Pessoa tem “personalidade” própria e escreve de modo distinto dos outros heterônimos e do poeta quando assina sua criação, as imagens de Guazzelli buscam sua própria forma que corresponda aos poemas que acompanham. A tabacaria fora de mim tem imagens que impressionam por sua ambiguidade e pela maneira como parecem se fundir umas nas outras, como se concebidas a partir da mais livre associação de ideias. O desassossego de Bernardo é em preto e branco, com traços duros entre luz e sombras. O pastor de almas, por fim, tem imagens límpidas, claras, que reforçam a solidão de sua personagem e a imensidão do mundo.
Não são imagens que pretendem contar uma história. Também não buscam sublinhar as palavras de Pessoa – algo desnecessário, qualquer leitor da obra do poeta sabe que elas têm vida própria. O que os desenhos de Guazzelli fazem é um inventário de algumas das obsessões de Fernando Pessoa – Lisboa, a palavra, a passagem do tempo, o lírico descoberto subitamente na coisa mais prosaica, a poesia do homem comum, os choques entre o cosmos e o microscópico, entre o coletivo e o individual, entre passado e presente, a nostalgia do existir na modernidade, o fascínio e o desconforto da consciência de ser no mundo.
Uma frase como “depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta”, por exemplo, estará num quadro onde casas achatadas formam quase um grafismo abstrato. Guazzelli nos fala de impressões produzidas pela poesia, não de uma possível tradução da poesia. Sua estratégia pode não ser nova – o cineasta britânico Derek Jarman, por exemplo, a usou no magnífico Conversação dos anjos, delirante meditação visual sobre os sonetos de Shakespeare. Mas funciona, e muito bem, numa reflexão dos quadrinhos sobre Fernando Pessoa.
JOGO Fernando Pessoa e outros Pessoas, como outras obras que usam textos anteriores praticamente sem cortes, acaba revelando muito sobre a função do roteirista dos quadrinhos. A impressão que tem o leigo, que confunde o roteiro com o que se vê em legendas e balões, é que quase não há esforço. Engano. Por mais que o trabalho de Guazzelli esteja em evidência (e, contrariando a praxe que coloca os roteiristas em primeiro lugar, é o nome do ilustrador que tem destaque na capa desta edição), é a maneira como Davi Fazzolari organiza o texto de Fernando Pessoa que garante boa parte da poesia, na maneira como corta versos e frases, associa ou fragmenta blocos de palavras, dando pistas para o que os desenhos deverão ser, ou sobre como deverão ser vistos e encadeados. No fim das contas, do jogo entre Fazzolari e Guazzelli surge algo que nos evoca os versos sobre amor e natureza, de Alberto Caeiro, apresentados na edição: depois de ler Fernando Pessoa e os outros Pessoas, o poeta continuará sendo o mesmo, só que diferente.
• Saraiva, coleção HQ Saraiva, 80 páginas, R$ 34,90
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