Pense rapidamente em todos os super-pais de histórias-em-quadrinhos que você conhece. Agora, pense quais deles você acredita que são bons pais. Finalmente, se você pudesse escolher um deles para ser seu pai, qual seria? Talvez seja mais fácil pensar quem você não queria que fosse seu pai de jeito nenhum.
Paternidade é um tema muito presente em histórias-em-quadrinhos, mesmo sem ser o centro das grandes histórias. Grande parte do caráter das personagens mais importantes é construída a partir da relação que tiveram com os pais.
Com histórias de origem se tornando cada vez mais comuns (e repetitivas), volta-e-meia lemos sobre a importância do binômio Jonathan Kent/Jor-El na formação do Superman, o complicado papel deAlfred como pai e empregado, a perda de Matt Murdock ou Peter Parker como o empurrão definitivo para a carreira heróica, etc.
O processo de humanização característico da Era de Bronze dos quadrinhos estabeleceu uma exigência: até coadjuvantes deveriam ter um background familiar consistente, mesmo que nunca viesse a ser explorado nas histórias. Faz alguma diferença, por exemplo, saber que o pai de Lois Lane é um militar conservador e frustrado por só ter filhas? Ou que o pai de Cain Marko tinha como único objetivo se apossar da fortuna do enteado Charles Xavier? Sim, e muita.
Embora o determinismo familiar seja uma teoria muito falaciosa, é inegável que a relação paterna tem influência na formação do indivíduo. Claro que não funcionamos como aquele papel em branco, que aceita qualquer coisa que nossos pais queiram rabiscar, mas muito do nosso caráter se constrói pela rejeição e/ou aceitação do modo como a presença ou ausência do pai se dá em nossa vida desde os primeiros instantes de existência.
Voltemos, então, ao pequeno exercício de imaginação proposto no primeiro parágrafo. Há um bom número de super-heróis que precisam enfrentar o duro desafio de criar filhos entre uma aventura e outra. Mas eles são bons pais? A propósito, o que significa, dentro da realidade de um super-herói, ser um bom pai?
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Sustento
Alguém precisa pagar as contas. O senso-comum atribui esse papel ao pai, mesmo que a realidade não seja mais essa há muito tempo. Nas famílias clássicas, isso até podia dar certo (há controvérsias), mas como isso funciona para um super-pai?
Reed Richards, Tom Strong, Bruce Wayne, entre outros, parecem ter recursos financeiros infinitos à disposição. Embora gastem a maior parte da grana em seus projetos e carreiras heróicas, não resta dúvidas que os filhos recebem todos os cuidados que o dinheiro pode comprar. Facilita muito o fato de que os dois primeiros têm identidade publicamente reconhecida e serem cientistas com contratos de pesquisa milionários, enquanto o último é o dono de uma poderosa corporação.
A coisa se complica quando se é herói de meio-período. Conciliar o emprego e a carreira super-heróica não é a mesma coisa que o sujeito jogar bola duas vezes por semana depois do expediente antes de voltar pra casa. Super-heroísmo é um hobby muito caro. Mesmo. E não estamos falando só do dinheiro.
Super-heróis ficam um bom tempo afastados do trabalho, o que dificulta um emprego normal, daqueles de bater o ponto. Então, restam o sub-emprego, que paga mal, e o trabalho autônomo, que não tem garantias financeiras e pode exigir muito mais tempo de dedicação do que a carreira heróica permite. Em tempos de crise, o seguro-desemprego talvez seja a única fonte de renda acessível.
Ter um filho sem poder sustentá-lo não parece realmente coisa de super-herói. Espera-se que eles sejam responsáveis. Mesmo assim, me intriga o fato de não aparecer alguém batendo na porta de Gambit, Johnny Storm ou Tony Stark com um bebê (se bem que os dois últimos também não têm problemas financeiros).
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Proteção
Proteger os filhos é a função mais simples e inquestionável que um pai deveria ter (e é chocante que tantos pais fracassem de maneira tão abissal), até porque somos pateticamente frágeis nos primeiros anos de vida.
Os problemas de um super-pai nesse aspecto são muito diversos. O mais óbvio é o risco de algum inimigo descobrir que um herói tem filhos. Pior ainda quando todo o mundo sabe quem você é e quem são seus filhos! (Reed Richards não parece tão inteligente assim, se considerarmos o quesito segurança familiar). E se os filhos resolvem que precisam acompanhar os pais nas ações heróicas? Como protegê-los em campo? É possível trancá-los dentro de casa? E a pergunta inevitável: se um herói tiver que escolher entre salvar o planeta ou o filho?
Dependendo da natureza de seus poderes, um super-pai pode ter que proteger os filhos de si mesmo, já que situações cotidianas inofensivas para gente normal se tornam muito perigosas quando super-poderes estão envolvidos. Quanta força Tom Strong poderia usar para tirar um objeto perigoso da mão deTesla quando era um bebê? De que maneira os poderes de Magneto afetariam o desenvolvimento do pequeno Charles (Era de Apocalipse)? E se o bebê Nathan puxasse os óculos do pai de repente? (Óculos parecem exercer uma atração irresistível sobre bebês).
Se o casamento já é uma decisão mais do que delicada para um super-herói, ter filhos é ainda pior: em hipótese alguma pode ser conseqüência de um acidente.
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Educação
Educar os filhos talvez seja a parte mais difícil da aventura da paternidade. Estão em jogo a felicidade dos filhos, a imagem da família, as exigências da sociedade, as necessidades objetivas e subjetivas de alguém que não veio com um manual de instruções.
Há, é claro, livros, TV, revistas, redes sociais, amigos, milhões de fontes de informação e conselhos sobre como educar os filhos de modo que eles cresçam saudáveis e se tornem indivíduos produtivos, ajustados à vida em sociedade, independentes e felizes (a ordem varia). Toda essa ajuda atrapalha um bocado, já que o pai agora precisa filtrar e excluir as incontáveis bobagens à disposição.
Tirando os pais mortos, desaparecidos ou abusivos, os super-pais talvez sejam os mais ausentes de todos. Sempre existe uma invasão alienígena, um raio-da-morte, um gatinho na árvore que exigem atenção imediata. Os filhos acabam mesmo em segundo plano. Você pode até dizer que médicos, policiais, bombeiros e outros profissionais têm o mesmo problema. Discordo. Heróis não têm expediente fixo ou folga semanal.
A coisa se complica ainda mais se a identidade do herói for secreta. Ele não pode dizer ao filho que não pode levá-lo ao aniversário do amiguinho porque precisa desviar um meteoro em rota de colisão com a Terra. Criança nenhuma é capaz de guardar um segredo como esse. Não que a vida de um super-pai publicamente conhecido seja mais fácil nesse aspecto. Imagine como é difícil fazer seu filho entender que ele está no cantinho-da-disciplina porque bateu no coleguinha da escola que pegou seu lápis sem pedir e, logo em seguida, sair para trocar socos, tiros ou rajadas óticas contra vilões que roubaram um banco, com cobertura ao vivo da TV.
Há, também, o problema de ensinar os super-filhos a usar corretamente os poderes. Até onde sabemos, os mutantes são os únicos que têm uma escola especializada. É bem provável que o Instituto Xavier aceitasse jovens poderosos não-mutantes, mas resta o problema de que a mutação ocorre na adolescência e alguns dos filhos de super-heróis já apresentam poderes na infância.
Se os filhos têm poderes semelhantes aos dos pais, talvez o processo seja um pouco mais fácil. Mas o mais comum é que os poderes sejam muito diferentes e até muito superiores: educar Jenny Quantum ou Franklin Richards talvez seja mais importante do que impedir a destruição da Terra, porque a existência do multiverso está em jogo.
A adolescência deve ser o período mais complicado. Todo o adolescente se sente injustiçado pelo pai pelo menos uma vez na vida. Uma palavra mal-colocada, um castigo mal-assimilado ou um simples mal-entendido podem ser o pequeno estímulo que iniciará uma terrível carreira super-vilanesca. E adivinha quem é que vai ter que enfrentar o problema!
Se existe alguma tabela de correspondência entre grau de poder e nível de responsabilidade, é certo que o pátreo poder é o mais baixo em termos de capacidade, mas o mais alto na responsabilidade.
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Suporte emocional
Os conservadores vão dizer que esse é um papel materno (daquelas bobagens consagradas pelo mito de que o homem não deve expor sentimentos ou abandonar a racionalidade). Pai algum tem todas as respostas (e aqueles que acham que têm geralmente só conseguem deixar os filhos inseguros, incomodados ou irritados), mas qualquer pai deveria ser capaz de dar um abraço, ver o teatrinho da escola, ajudar a soprar as velinhas do bolo, ter uma conversa franca, ouvir os lamentos, participar das conquistas… Talvez os filhos prefiram a mãe para esse tipo de coisa, mas é importante que o pai esteja pronto para dar suporte emocional quando necessário.
Esse é um aspecto pouquíssimo trabalhado no universo dos quadrinhos super-heróicos. Todas as minhas referências são de personagens humanas normais: Tex Willerconfortando o filho Kit após a trágica morte do primeiro amor do rapaz, Jonathan Kentajudando Clark a lidar com o fato de ser um outsider, sei-lá-quantas histórias da Turma da Mônica, etc.
Entre os super-pais, Reed Richards é, quase sempre, um pai emocionalmente ausente. Tom Strong não tem nenhuma história (que eu me lembre) que trabalhe a relação familiar nesse nível de exposição. Peter Parker é tão banana que provavelmente é a filha que serve de suporte emocional pra ele. Ciclope? Militarista. Magneto? Fundamentalista.Wolverine? Deixa pra lá (se bem que ele até se virou bem como suporte da Jubileu). Batman? Você realmente consegue imaginar o Batman dando suporte emocional pra quem quer que seja? (Verdade que também é bem difícil imaginar Damian precisando de um abraço, mas os primeiros anos devem ter sido bem difíceis para Dick).
(Pois é… Alguém conseguiu).
Parece haver uma certa incompatibilidade entre a carreira super-heróica e o papel paterno de ser suporte emocional dos filhos. Não é pra menos: super-heróis raramente têm chance de expressar as emoções. Ou, pelo menos, não vemos nada disso acontecendo nos gibis. Podemos supor que seja apenas uma parte da vida familiar desinteressante para nós leitores que os roteiristas simplesmente não mencionam?
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Legado
Um bom pai quer que seu filho tenha sucesso, seja feliz, faça alguma coisa importante na vida. Se tem orgulho de sua própria condição, muito provavelmente deseja que o filho siga o mesmo caminho. Ao menos por esse aspecto, parece que a maioria dos super-pais é bem-sucedida na criação dos filhos. É comum vermos histórias em que pai e filho lutam juntos contra o mal ou, no mínimo, a simples passagem de bastão.
O caso mais bem-sucedido de legado heróico, sem sombra de dúvida, é a família Walker e suas (no mínimo) 28 gerações de Fantasmas. Desde 1536, todos os meninos (e algumas meninas) da família foram preparados para assumir o colante roxo. É verdade que nem todos o fizeram — até porque nem todos foram filhos únicos e escolhia-se o mais adequado para o cargo —, mas todos se mantiveram fiéis ao legado do Fantasma, mesmo fora da carreira heróica. (Na verdade, um se desviou — o irmão do 27.º Fantasma —, mas é um único fracasso numa longuíssima linhagem de sucesso).
Sabemos pouca coisa sobre a infância e a adolescência deles e, portanto, não temos muitas pistas sobre como esse legado foi transmitido e assimilado por tanto tempo. Sabemos apenas que a linhagem quase se interrompeu com Kit Walker (o 24.º Fantasma— deve ser o nome mais comum na história da família), que aprendeu o serviço na marra (sua mãe quis poupá-lo do fardo e não revelou o segredo da família até ser inevitável —Phantom 2040), mas ele certamente preservou a tradição, já que seu bisneto e sua tataraneta acompanharam Flash Gordon e Mandrake na equipe conhecida comoDefensores da Terra.
Em termos de consistência de roteiro, a melhor história de passagem de bastão (que eu lembro agora) é o primeiro arco de Jack Knight como Starman. Filho de Ted Knight, oStarman original, ele recebe o bastão cósmico (HAH!) a contragosto, após a morte do irmão mais velho. Jack não quer seguir a carreira do pai e essa já era uma posição muito forte antes mesmo do irmão ser morto em ação. Acha o uniforme ridículo (e é mesmo), não vê sentido em passar as noites acordado caçando criminosos, considera fútil todo o assédio do público e da imprensa, tem certeza de que a maior parte do trabalho que o pai e o irmão fizeram poderia ser feito por policiais e bombeiros comuns.
O reencontro com o passado e as circunstâncias fazem com que ele aceite o legado, mas com duas condições: só entrará em ação em último caso, quando houver certeza de que nenhuma pessoa comum pode resolver o problema, e jamais vestirá o uniforme vermelho — ele luta contra os inimigos usando jeans, camiseta, sobretudo, óculos anti-clarão e uma estrela de xerife (você deve concordar que é muito mais cool). Não é o que o pai dele considera ideal, mas é o bastante para deixá-lo satisfeito e orgulhoso.
O problema do conceito de legado é que ele não dá muito espaço para os filhos construírem seus próprios projetos de vida. Há por aí um incontável número de jovens tentando carreiras em Direito ou Medicina, etc, para realizar a vontade do pai. Para esses jovens, ser filho de médico, advogado, dentista, whatever, é um peso. Conseguem, então, imaginar o peso que carregam os filhos de super-heróis? Quantas vezes por dia eles ouvem o discurso sobre poder e responsabilidade? E se o que eles realmente querem é ter uma vida normal?
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Depois de pensar tudo isso, tenho duas certezas: (1) ainda bem que meu pai não é um super-herói e (2), se um dia eu me tornar um super-herói, é melhor ter um sidekick do que um filho, porque o sidekick pode ser demitido.
(Essa pode não ser uma boa idéia também).
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