Tese investiga importância de gibis na formação de leitores na infância 
Por GONÇALO JÚNIOR | 
  Edição 161 - Julho de 2009 - 
Revista Pesquisa FAPESP
  
      
Em 1944, a 
Revista do Inep (Instituto
 Nacional de Estudos Pedagógicos), do Ministério da Cultura, publicou ao
 longo de três edições um estudo bombástico a partir de uma pesquisa 
feita com professores e estudantes sobre as histórias em quadrinhos, um 
produto de massa surgido no país na década anterior. A conclusão era das
 mais alarmistas: os 
comics constituíam um nocivo instrumento 
que estava prejudicando o aprendizado escolar de diversas formas: 
desestímulo ao estudo das disciplinas, abandono dos livros infantis e, 
pior, causavam preguiça mental, ao viciar os estudantes com imagens e 
poucos textos. Seguiu-se, então, uma guerra em escolas de todo país, 
quando fogueiras foram organizadas para queimar gibis. Mais lenha foi 
jogada no incêndio quando o professor Antonio D’Ávila publicou, em 
1958, 
A literatura infanto-juvenil, um tratado em defesa dos livros para crianças e contra as revistinhas.
Foi preciso duas décadas para que editoras como Ibep e Ática 
adotassem a linguagem dos quadrinhos em seus livros de português, 
geografia, história e matemática. Desde então, a aceitação das 
revistinhas pelos professores como reforço paradidático parecia 
pacífica. Na verdade, os quadrinhos se tornaram quase sempre o primeiro 
contato de várias gerações de crianças com o aprendizado da leitura e da
 escrita e de entretenimento, além de um objeto de grande valor afetivo,
 sempre ligado à infância. É o que está exposto na tese de Valéria 
Aparecida Bari, 
O potencial das histórias em quadrinhos na formação 
de leitores: busca de um contraponto entre os panoramas culturais 
brasileiro e europeu, com orientação do professor Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP.
Na pesquisa, ela se propôs a discutir a importância das histórias em 
quadrinhos na formação do gosto pela leitura das crianças, a partir das 
experiências de dois países: Brasil e Espanha. Ao mesmo tempo, 
debruçou-se sobre a compreensão das mensagens transmitidas tanto pelo 
texto das histórias quanto pelos desenhos – que são indissociáveis e se 
completam nesse tipo de arte. Segundo a pesquisadora, os elementos que 
constituem os quadrinhos, como o letramento, abrem possibilidades de 
inserção dos produtos da linguagem gráfica sequencial nas práticas 
biblioteconômicas e pedagógicas atuais. “A leitura de histórias em 
quadrinhos forma leitoras que gostam de todo o tipo de leituras, com a 
vantagem de criar também uma cultura de leitura infantil e comunidades 
leitoras de grande abrangência”, observa. “Afinal, é preciso lembrar que
 a formação do leitor só chega ao amadurecimento se a pessoa gostar de 
ler. O vínculo emocional é um elemento fundamental. Nesse sentido, as 
histórias em quadrinhos, além da facilidade de mostrar conteúdos 
complexos para leitores iniciantes, também amadurecem a relação 
emocional entre o leitor e sua leitura”.
A
 pesquisadora destaca que, em um país que muito recentemente deixou de 
ser predominantemente analfabeto, o primeiro contato de grande parte da 
população com a leitura se deu nos bancos escolares e nas bibliotecas 
públicas. “Temos uma geração que, no início do século XXI, foi 
impulsionada a ingressar num mundo letrado e virtualizado, sem que as 
vivências leitoras tenham um significado em sua vida real. Somente o 
prazer e o gosto podem justificar esse esforço para subir os enormes 
degraus da alfabetização e letramento”. Segundo ela, a linguagem híbrida
 das histórias em quadrinhos, que conjuga texto e imagem na formação dos
 significados complexos, forma um leitor atento, eclético e proficiente,
 para a leitura competente de diversas mídias e linguagens, assim como 
na qualidade da organização das ideias e a formulação de textos 
escritos, com muita diversão e articulação.
O letramento, prossegue ela, compreende fases evolutivas como 
pré-requisitos para a formação das habilidades e competências leitoras. 
Primeiro, a decodificação, que requer a memorização do registro da 
linguagem escrita e sua reprodução gráfica. Segundo, a de reprodução, 
repetição e produção própria, que requer a memorização de estruturas 
mais complexas da linguagem escrita, ao mesmo tempo que o 
desenvolvimento de habilidades motoras para a reprodução de letras e 
sinais gráficos, competências linguísticas e articulação de ideias e 
raciocínios. “A prática da leitura e da escrita como exercícios de 
reprodução, repetição e produção, quando bem conduzida, leva à formação 
de hábitos leitores. Os hábitos, por sua vez, levam ao gosto pela 
leitura, a parte mais requintada e pessoal do processo de letrar 
alguém”.
Nesse contexto, as histórias em quadrinhos contribuem de forma 
relevante com todas essas fases: auxiliam muito na memorização, 
estimulam naturalmente a reprodução e produção própria do seu leitor, 
habituam as crianças à leitura e, de forma muito clara, formam o gosto 
leitor. “Todas essas fases têm em comum o grande esforço mental, 
sofrimento e comprometimento necessário por parte do indivíduo, para o 
êxito do letramento. Como uma vantagem adicional, preparam o cérebro 
para trabalhar integradamente as amídalas direita e esquerda, já que se 
utilizam de linguagem híbrida, facilitando a subjetividade e preparando o
 cérebro para o pensamento complexo”. Em sua opinião, não seria possível
 compreender o fenômeno da formação do leitor, ou seja, do letramento, 
sem as vivências sociais nos ambientes nos quais se dá a apropriação 
social da leitura. Nem seria procedente que tivesse obtido o grau de 
especialista, sem viver e reviver o fenômeno da leitura em sua 
plenitude. “As histórias em quadrinhos chamam a atenção para os aspectos
 mais positivos da leitura, tornando o ensino da leitura mais afetivo e 
voltado para a formação de gosto e personalidade do leitor, conforme 
pude constatar nas minhas entrevistas para a pesquisa, indo muito além 
das leituras que não poderiam deixar de embasar uma pesquisa 
científica”.
© REPRODUÇÃO

 
O
 trabalho da Valéria parecia ter colocado uma pedra sobre o preconceito 
de décadas contra os gibis no Brasil. “A inegável popularidade dos 
quadrinhos foi, talvez, responsável por uma espécie de desconfiança 
sobre os efeitos que eles poderiam provocar nos leitores. Já que são um 
meio de comunicação de vasto consumo e com seu conteúdo voltado para os 
jovens, as HQs se tornaram, logo cedo, objeto de restrição por parte de 
pais e professores”, observa Waldomiro Vergueiro, coordenador do Núcleo 
de Pesquisas em Histórias em Quadrinhos da ECA-USP e organizador do 
livro 
Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula (Editora
 Contexto, 160 páginas, R$ 25,00), ao lado de Angela Rama, Alexandre 
Barbosa, Paulo Ramos e Túlio Vilela. Foi só depois de os quadrinhos 
ganharem um novo status, em especial na Europa, como forma de arte que o
 preconceito foi diminuindo e se começou, timidamente, a incluir 
quadrinhos em materiais didáticos, de início para ilustrar partes das 
matérias que, antes, eram explicadas por um texto escrito. “Houve erros e
 exageros pela inexperiência do uso em ambiente escolar, mas as 
iniciativas contribuíram para refinar esse processo”, afirma Vergueiro. 
Hoje é muito comum usar quadrinhos para transmitir conteúdo, em especial
 após a avaliação realizada pelo Ministério da Cultura, a partir de 
meados de 1990. Mais recentemente, o emprego de histórias em quadrinhos 
na educação é reconhecido pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e pelos 
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). “Há várias décadas, os 
quadrinhos fazem parte do cotidiano dos jovens e, assim, a inclusão 
desse material na sala de aula não é objeto de qualquer tipo de rejeição
 por parte dos estudantes que, em geral, o recebem de forma 
entusiasmada”.
Vergueiro lamenta que haja no Brasil e até mesmo no mundo um 
subaproveitamento dos quadrinhos nas salas de aula das mais diversas 
formas – reforço paradidático, estímulo à alfabetização (uma vez que é 
uma forma de entretenimento) etc. “A interligação do texto com a imagem,
 que existe nos quadrinhos, amplia a compreensão de uma forma que 
qualquer um dos dois códigos, sozinho, não conseguiria atingir”. Segundo
 o pesquisador, há ainda um desconhecimento do meio por parte dos 
professores, que não lhes possibilita saber o que escolher e como 
utilizar em aula. “Soma-se a isso o pouco incentivo governamental 
existente para utilização das histórias em quadrinhos, deixando 
praticamente toda a iniciativa por conta dos professores”.
Como argumentos para defender a adoção dos quadrinhos no ensino, ele 
destaca a familiaridade dos alunos com as histórias em quadrinhos e com 
os elementos de sua linguagem desde os primeiros anos de vida, o fácil 
acesso aos produtos quadrinhísticos, o baixo custo do material (na banca
 de jornal) quando comparado a outros meios, a possibilidade de 
aplicação em virtualmente todas as áreas e disciplinas e a possibilidade
 de desenvolver estudos ou projetos multidisciplinares com histórias em 
quadrinhos. “Acho que devemos ter uma atitude permanente de 
esclarecimento dos professores quanto às vantagens e possibilidades de 
utilização dos gibis em sala de aula”.
© REPRODUÇÃO

 
Para
 Vergueiro, isso poderia começar na formação dos professores que, quando
 ainda alunos de graduação, podem e devem ter contato com as histórias 
em quadrinhos como instrumento de trabalho de sua futura profissão, 
familiarizando-se com produções importantes da área e recebendo 
orientações de como utilizá-las em ambiente didático. “A ideia 
preconcebida de que os quadrinhos colaboram para afastar as crianças e 
jovens da leitura de livros e outros materiais já foi refutada por 
vários estudos. Hoje sabemos que os leitores de quadrinhos são também 
leitores de outros tipos de jornais, revistas etc. A ampliação da 
familiaridade da leitura de quadrinhos, na sala de aula, permite que 
muitos estudantes se abram para a leitura, encontrando menos 
dificuldades para concentrar-se nas leituras que são destinadas ao 
estudo”. Há quem defenda a importância dos quadrinhos como forma de 
facilitar o acesso à literatura. “Já cresceu o reconhecimento da HQ como
 recurso pedagógico, porém, na escola, instituição que homologa o uso 
dos quadrinhos como ferramenta de ensino e aprendizagem, a concepção que
 prevalece é aquela que vê nos quadrinhos apenas um recurso auxiliar 
para aprender, não reconhecendo neles o seu diálogo com o literário. Há 
uma carência sobre o quadrinho e as possibilidades comunicativas que ele
 oferece”, explica Maria Cristina Xavier de Oliveira, autora da tese de 
doutorado 
A arte dos quadrinhos e o literário, defendida há poucos meses na USP sob orientação de Nelly Novaes Coelho.
“O quadrinho apresenta novas formas de criar textos e de leitura. É 
uma arte que, ao contrário do que se pensa, precisa ser apreendida e 
compreendida. O quadrinho é um meio que pode servir a muitos fins, como 
despertar um olhar criativo, o raciocínio rápido, a concatenação de 
ideias, o domínio de técnicas de composição e da exploração visual. Os 
quadrinhos podem ser um meio de formação de leitores, não passivos, 
meros receptores, mas ativos, colaboradores importantes na leitura e na 
construção de novos textos”, acredita. Quem disse que aquilo que você 
adora ler é “apenas um gibi?” Com certeza foi alguém que não participou 
da Campanha de Desarmamento Infantil, em Recife, onde, em poucas 
semanas, mais de 500 mil armas de brinquedos foram trocadas por gibis. A
 pena do quadrinho, com certeza, é mais forte do que a espada ou o 
revólver. E bem mais gostosa de se ver.
 
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