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segunda-feira, 9 de março de 2015

Mulheres brasileiras nos quadrinhos: esse clube não é só para homens

lu cafaggi
Dia Internacional da Mulher está aí. E contrariando o senso comum de que o universo dos quadrinhos é formado apenas por homens, elas hoje fazem de tudo nesse meio: desenham, escrevem, editam. Elas estão cada mais visíveis, cada vez mais numerosas.
A internet ajudou a catapultar muitas dessas meninas. É o caso, por exemplo, dos coletivos Lady's Comics e MnQ (Mulheres nos Quadrinhos). Estudante de História da Arte, a carioca Roberta Souza, do MnQ, compartilha no site um número incontável de obras e artistas femininas.
O sucesso do MnQ foi tão grande que, no ano passado, o financiamento coletivo do primeiro livro do projeto ultrapassou em quase R$ 10 mil a meta de arrecadação.

"[O projeto] Deu muito certo. Além de me fazer crescer, ainda ajuda várias minas que estão na luta", disse. Mesmo no meio acadêmico, Roberta sentiu que a nona arte precisava de mais atenção. "[Nas aulas,] quando [a arte dos quadrinhos] era lembrada, era mais voltada para o mundo masculino. Então, o MnQ foi um jeito de me encontrar e aprender mais sobre quadrinhos."
Algumas dessas novas artistas são old school. É o caso de Lilian Mitsunaga, de São Paulo, que trabalha como letreirista de quadrinhos há mais de 30 anos. Em seu extenso currículo, Lilian "letreirou" clássicos cult como Nova York, de Will Eisner, e Retalhos, de Craig Thompson (ambos lançados em 2009 pela Companhia das Letras). Ela trabalhou em vários gibis publicados pela Editora Abril nos anos 1980.
Ela conta que nunca se sentiu discriminada na comunidade dos quadrinhos por ser mulher. "Sinceramente? Acho que poderia ter mais gente trabalhando com quadrinhos, não só mulheres, mas sei por experiência própria que é muito complicado publicar qualquer coisa no Brasil."
"As pessoas se esquecem das roteiristas, da turma que trabalha na edição do texto, tradutoras, diagramadoras, revisoras. Elas também fazem parte da equipe que coloca em banca o produto final", disse.
A mineira Lu Cafaggi (na foto acima) faz parte da epidemia de garotas quadrinistas que surgiram da internet.
Ela começou publicando em seu blog, em 2010. Ano passado, ela levou para casa 2 prêmios HQMix, nas categorias de novo talento (desenhista) e roteirista nacional – este dividido com seu irmão, Vitor Cafaggi, pelo trabalho de ambos na graphic novel Turma da Mônica: Laços (Panini, 2013).
A quadrinista (veja o Tumblr dela!) deu uma passada na redação do Brasil Post, onde ela bateu um papo sobre representação da mulher nos quadrinhos e feminismo.
Lu, você se considera feminista?
Sim, eu me considero feminista. Inclusive, demorei muito para conseguir falar essa frase, "eu sou feminista". Porque, por mais que eu tenha sempre acreditado no feminismo, me envolvido e me identificado com a causa, a gente cresce em um ambiente machista. Seja na família, seja na escola, em qualquer lugar, você vai crescendo e colecionando pequenas frases, pequenos valores, pequenos conceitos que, em certo momento, fazem você se perguntar: "Por que estou repetindo isso?"
Demorei para falar essa frase porque eu achava que ainda tinha alguma coisa inconsciente. Eu não podia me considerar feminista. Eu não era puramente feminista. Quando eu me livrar de qualquer preconceito, posso afirmar isso. Mas acho que é um processo de "purificação" que é quase impossível.
O importante é você manter seu exercício de se questionar sempre, porque tem coisas que ficam tão enraizadas, que só quando você tiver uns 40 anos, você vai dizer "Por que eu pensava isso? Agora eu sei do que eu estava falando". E isso vale pra qualquer tipo de preconceito.
Você já se sentiu discriminada na comunidade dos quadrinhos por ser mulher?
Essa pergunta eu acho um pouco difícil. Porque, se eu mandar alguma ideia pra algum editor e falar "Eu tenho essa ideia, dá uma olhada", e se ele olhar e não aprovar, é difícil de saber se é por eu ser mulher ou por meu trabalho não estar bom o suficiente. Então, nesses casos, até por eu sou muito autocrítica, eu entendo como "o trabalho não está bom o suficiente". Então tem que trabalhar muito mais, apresentar outras coisas, outras propostas. Não entendi esses casos como se fossem "ah, porque você é mulher!" Esse tipo de coisa não me aconteceu.
Acontece uma coisa que parece ser o contrário, mas não é: quando a pessoa te valoriza por você ser mulher. Dizem "Olha só, tem esse quadrinho dessa mulher, olha que foda!" E o trabalho da menina é super sensacional mesmo, mas o pensamento da pessoa que posta isso, às vezes, é de colocar: "Quadrinho de homem é assim; quadrinho de menina é assado". É como se fosse nivelar por baixo. Esperam que as meninas não façam algo que seja bom e, quando fazem, [outras pessoas] dizem "nossa, olha que extraordinário isso que essa menina fez". Quer dizer, é como se a expectativa fosse a de que mulheres não fariam tão bem quanto os homens.
Há mais homens no meio dos quadrinhos que mulheres, no Brasil?
Quando a gente vê na internet, é de igual para igual. Mas em eventos ou numa matéria na TV, a porcentagem de homens que aparecem é maior que a de meninas, ou então, você pega uma coletânea de quadrinhos e conta lá quantos caras foram chamados e quantas meninas. Geralmente, o número de meninas é menor. E existem as revistas e os eventos de nicho também; quando esses são para meninas, o número é quase total.
Nessas situações os homens predominam, sim, mas aí é uma edição que o evento faz ou a coletânea faz da realidade mesmo. Eu pesquiso muito sobre meninas que fazem quadrinhos. Meu círculo de amizades no Facebook, de meninas quadrinistas e meninos quadrinistas, é bem de igual para igual.
A internet tem servido de "trampolim" para quadrinistas divulgarem suas obras. É o caso de Mulheres nos Quadrinhos e Lady’s Comics. Você acha que blogs e redes sociais dão conta do recado ou as mulheres precisam de mais espaço fora do virtual também? O mercado está de braços abertos para vocês?
Acho que estamos num processo de braços se abrindo. A internet, sem dúvida, foi o que promoveu isso. As meninas foram aparecendo, se sentindo à vontade para publicar, se identificando com mais quadrinhos que estavam aparecendo na internet... Paralelamente, a discussão do feminismo e da representação da mulher nos quadrinhos foi crescendo – ela é riquíssima hoje.
Começou com uma postura defensiva – o que é excelente – e foi se ampliando para outros contextos. Se você for escrever uma matéria sobre feminismo nos quadrinhos, mas com uma abordagem mais histórica, você já sabe quem entrevistar. Se for uma abordagem mais política, você já sabe quem entrevistar. A discussão foi se ramificando. E, com isso, acho que os eventos e os editores, e até os editores independentes que fazem coletâneas, têm se atentado a isso, e falam "Vamos chamar essas meninas para nosso evento", por exemplo.
Faço quadrinhos desde 2010 e, desde então, tenho observado isso. Participei de vários eventos e, no começo, eu via a mesa "mulheres nos quadrinhos", e todas as pessoas que debatiam na mesa eram mulheres, e poucas delas debatiam nas outras mesas também. Então, foi criando-se uma espécie de gueto dentro dos eventos. Com todas as boas intenções do mundo, foi criada essa mesa, pra esse feminismo ser debatido. Sempre tinha uma, e em vários eventos. Começou a acontecer recentemente, e eu observei isso muito bem noFIQ 2013 [Festival Internacional de Quadrinhos, de Belo Horizonte] que, em vez de ter a mesa para mulheres e as mesas ficarem limitadas apenas àquele espaço e discussão, foram colocando meninas em todas as mesas.
Você, como uma mulher feminista e quadrinista, o que tem te incomodado nos últimos tempos em quadrinhos?
Atualmente, eu acompanho muito mais os quadrinhos autorais, principalmente os feitos aqui no Brasil. Acho que todo mundo tá tentando descobrir quem é a personagem feminina. A personagem feminina, até pouco tempo atrás, era explorada como um mito, e não como uma mulher de verdade. Em vários quadrinhos ela é muito erotizada, e a personagem é só um acessório pra história. Ela não tem vida própria, existe ali pra ser par do protagonista ou um mero acessório. Ela não tem vida própria, não tem autonomia, não faz diferença pra história em si.
Isso acontece nos quadrinhos, no cinema, na literatura – não é um fenômeno dos quadrinhos. A figura feminina, nas diversas mídias e produtos de entretenimento, é trabalhada desse jeito, porque foi por muitos anos. Agora, a partir dessas discussões que foram geradas nas redes, é um processo de descoberta mesmo.
Acredito que pro quadrinista homem seja um pouco difícil começar a prestar atenção em quem é a mulher de verdade e dar um jeito de trazer isso pra personagem dele – porque eu mesma, como mulher, tenho dificuldade em representar homens. A maioria das minhas personagens é feminina. Eu sigo um caminho seguro porque conheço mulheres, mas isso tem que ser revisto, porque há uma rede inteira de possibilidade de gêneros, de se ser. E isso tem que ser trabalhado de um jeito conjunto. Tanto pelos homens, quanto pelas mulheres.
Veja abaixo alguns exemplos de mulheres brasileiras que quebram tudo nos quadrinhos.
  • Lu Cafaggi (desenhista)
    Divulgação/Panini
    Ganhou 2 prêmios HQMix, por Turma da Mônica: Laços (Panini, 2013), nas categorias de novo talento (desenhista) e roteirista nacional – este dividido com seu irmão, Vitor Cafaggi, que também é quadrinista e trabalhou em Laços
  • Lilian Mitsunaga (letrista)
    Divulgação/Veneta
    Trabalha como letreirista há mais de 30 anos. Já "letreirou" clássicos, como Batman – O Cavaleiro das Trevas (1986), de Frank Miller e Klaus Janson, e Maus (1991), de Art Spiegelman. (Na imagem, Do Inferno, de Alan Moore e Eddie Campbell. Veneta, 2014)
  • Magra de Ruim (série)
    Reprodução/Sirlanney
    Projeto da cearense Sirlanney Nogueira - leia uma entrevista com ela na Tpm
  • "Malu: Memórias de uma Trans", de Cordeiro de Sá (quadrinho)
     Reprodução
    Baseada em histórias reais de pessoas trans, Malu (RPHQ, 2013) foi feita por um homem heterossexual e cisgênero, mas é um dos poucos quadrinhos que abordam o tema, além de Queer Horror, da página Tailor
  • Anna Bolenna – a perturbada da corte (série)
    Reprodução
    O ponto de vista da mineira Bi Anca é expressado pela personagem Anna
  • Manzanna (série)
    Reprodução
    "Tem um cisco na minha mente", diz a página de Manzanna no Facebook, criação de Anna Mancini, designer e ilustradora de Minas Gerais
  • Mulheres nos Quadrinhos (projeto)
     Reprodução/Laura Maria
    site reúne obras de diferentes artistas – tá aqui uma boa oportunidade pra você conhecer mais garotas que quebram tudo na nona arte
  • Lady's Comics (projeto)
     Reprodução
    Site de Mariamma FonsecaSamanta Coan e Samara Horta feito para falar de mulheres nos quadrinhos. "HQ não é só pro seu namorado", diz a frase da página. E ponto.

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