Costumo reclamar com meus amigos do Universo HQ sobre a falta de material biográfico correto e fontes erradas, não apenas em português, mas em inglês, francês etc.
Existem centenas de livros sobre quadrinhos, em várias línguas, mas muitos deles incluem erros de datas e nomes, ou repetem informações já caducas, que há anos foram atualizadas, ou se limitam a materiais de referência de apenas uma origem (por exemplo, autores estadunidenses) e acabam sendo cúmplices na omissão dos outros.
São poucas as obras precisas e criteriosas que se pode consultar sem ter que confirmar as informações com outras fontes.
Esse problema sempre existiu e já era aparente para mim, mas essa dificuldade se cristalizou durante mais de uma década produzindo artigos para o Universo HQ. A situação se agrava quando preciso noticiar algo mais penoso, como o óbito de algum artista ou escritor.
Se o autor for brasileiro, existe outra agravante, a quase total falta de biografias de quem fez e faz quadrinhos no País.
Resolvi listar alguns exemplos encontrados nos últimos meses.
Ao contrário do que está escrito na maioria dos livros teóricos sobre Tarzan, a estreia do personagem nos quadrinhos não aconteceu em 1929 – junto com Buck Rogers. Na verdade, isso aconteceu em novembro de 1928, na revista semanal inglesa Tit-Bits, quase dois meses antes do lançamento nos Estados Unidos e Canadá. A informação não é “secreta”, está no livro Hal Foster, de Brian M. Kane (Vanguard Productions, 2001).
Logo após o anúncio dos indicados ao Eisner Award de 2014, surgiu a informação que o colorista Frank Martin era brasileiro. Sou leitor de East of West, a revista que lhe valeu a menção, e gosto do trabalho dele, mas não sabia que era meu conterrâneo.
Fui alertado pelo desenhista Mike Deodato e entrei em contato para fazer um perfil do artista. Frank Martin, na verdade Francisco Martins de Souza Júnior, foi bastante simpático e me enviou todas as informações necessárias.
Ele não é o único brasileiro a usar pseudônimo em seu trabalho para as editoras estadunidenses – uma prática sugerida por muitos agentes e estúdios que fazem o meio de campo para essa produção.
Mike Deodato (Deodato Taumaturgo Borges Filho), Roger Cruz (Rogério da Cruz Kuroda), Will Conrad (Vilmar Conrado) são alguns outros exemplos dessa prática.
Os três volumes da boa enciclopédia de Henri Filippini, Dictionnaire Encyclopédique des Héros et Auteurs de BD, cada um deles com quase mil páginas, também apresentam alguns erros, dentre eles, o fato de creditar alguns artistas brasileiros, como Roger Cruz, como norte-americanos.
Mas existe outro problema com o uso de pseudônimo. Na Era de Ouro (dos quadrinhos nos Estados Unidos), isso era prática comum para editoras pequenas que queriam se passar por grandes, e usavam alguns artistas com vários nomes para esse fim.
O inverso também ocorria. Alguns artistas inventavam pseudônimos para trabalhar secretamente para uma editora concorrente.
Existe um pseudônimo bastante peculiar nos quadrinhos: Charles Nicholas.
Era um nome de uso comum de vários artistas e foi usado em três ou quatro editoras diferentes, como a Fox Feature Syndicate e a Timely Comics (futura Marvel Comics).
Na Timely, o nome Charles Nicholas foi usado por Charles Nicholas Wojtkoski (que também utilizava Nick Karlton) e por Jack Kirby (que teve diversos pseudônimos no começo da carreira, como: Jake Cortez, Jack Curtis, Jack Curtiss, Bob Brown, Teddy, Ted Grey, Curt Davis e Fred Sande).
Kirby também assinou trabalhos com esse nome na Fox. Outro artista que usava esse pseudônimo foi Chuck Cuidera (Charles Nicholas Cuidera). Mas a documentação confusa e escassa não facilita a pesquisa do assunto.
Aliás, sobre Kirby, nem mesmo uma informação óbvia, como a data de nascimento do artista pode ser considerada simples. Em algumas fontes – muito possivelmente por um erro tipográfico – aparece o dia 25 de agosto de 1917, embora a maioria dos livros mais recentes (como a biografia escrita por Mark Evanier) aceite o dia 28 de agosto de 1917 como a data correta.
Particularmente, acredito que 28 de agosto de 1917 seja a correta, pois uma busca usando o nome e número do seguro social do artista em sites especializado sobre esse tipo registros batem com essa informação.
Para complicar, no caso de nascimentos no início do Século 20, os registros eram manuais e muitas vezes podiam ser de difícil leitura ou até transcritos para o meio digital com erros. Sem falar que, naquela época, não era incomum a pessoa nascer em uma data e ser registrada dias depois sem muita confusão.
Outro problema é a falta de arquivos e coleções definitivas. Veja o caso do personagem Namor. Até 1975, se acreditava que ele havia surgido na revista Marvel Comics # 1, cuja data de capa é de outubro de 1939.
Em 1975, porém, foram descobertas cópias da revista Motion Pictures Funnies Weekly # 1 (que só possui nove cópias “sobreviventes”), de abril de 1939, com a mesma história do Namor, mas com apenas oito páginas. A HQ publicada em Marvel Comics # 1 possui quatro páginas extras.
Essa revista trouxe outra curiosidade à tona. Algumas de suas edições são conhecidas como Pay Copy, pois nelas Lloyd Jacquet (o responsável pelo estúdio Funnies Inc.) anotava os valores pagos para os artistas pelas histórias, incluindo datas e números de cheques.
É por isso que se sabe quanto Bill Everett e Carl Burgos ganharam para criar o Namor e o Tocha Humana. O autor recebeu 83,25 dólares pelas oito páginas de Namor em MPFW # 1; e a quantia chegou a 96 dólares depois que ele desenhou mais quatro páginas para Marvel Comics # 1 (as 12 páginas finais de Namor).
Burgos recebeu 128 dólares pelas 16 páginas do Tocha Humana (de Marvel Comics # 1).Esses valores são de 1939.
A revista Motion Pictures Funnies Weekly foi cancelada antes da produção dos outros números. Apesar disso, foram produzidas capas para as edições # 2, # 3 e # 4 do título.
A descoberta de Motion Pictures Funnies Weekly invalidou diversos livros sobre quadrinhos publicados na década de 1970. Esse tipo de problema continua existindo, uma vez que poucos (mas eles existem) livros teóricos são reimpressos com correções.
Outro exemplo, mais recente, de um problema relativo à pesquisa é o tratamento da origem da personagem Isabel Kane, da Marvel Comics, que ganhou superpoderes em Avengers – Volume 5 #1, de fevereiro de 2013, e se tornou a heroína Smasher (posteriormente, Messenger).
Na revista original, seu nome era Isabel Dare e seu avô se chamava Dan. Para quem não sabe, Dan Dare é o nome de um famoso herói de quadrinhos das revistas inglesas, criado em 1950, por Frank Hampson.
A Marvel retificou a homenagem na edição encadernada da série. Atualmente, Isabel se chama Isabel Kane, e seu avô era Daniel “Dan” Kane, mais conhecido como o herói da Era de Ouro, Capitão Terror (Captain Terror), que surgiu em 1941.
Fica a impressão de que são realmente poucos e raros os livros nos quais os pesquisadores podem confiar. Parece que cada informação, por mais ínfima que seja, precisa ser verificada em duas, três ou mais fontes. Não é possível apenas replicar o que está nos livros e enciclopédias de HQs.
Os autores estadunidenses particularmente são mestres em repetir erros de “estudiosos” da década de 1960 e 1970. A divisão que eles fazem de tiras e comic books, como se fossem coisas completamente distintas e diferentes, e o fato de que costumam excluir o resto do planeta de suas pesquisas também atrapalham muito, tanto no estudo da história das HQs, quanto no estudo da evolução da narrativa. Uma pena.
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