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quarta-feira, 19 de julho de 2017

“Torta de Climão” apresenta um retrato saboroso da diversidade brasileira

É impossível ler as tirinhas de Kris Barz sobre o mundo LGBT e não se identificar com alguma das situações apresentadas. Confira a entrevista exclusiva com o autor
Por Marcio Caparica - Lado Bi
A maneira de agir, reagir e falar da comunidade LGBT brasileira ainda não foi representada de maneira fiel na TV nem no cinema. Mas existe uma obra que pinta um retrato ao mesmo tempo sincero e positivo de gays, lésbicas, trans e até de héteros: a HQ Torta de Climão, criada pelo ilustrador e cartunista Kris Barz.
Iniciado em 2012, o projeto foi lançado na internet e que se tornou um livro, publicado pela Hoo Editora (em 2015). Com um ouvido afiado para diálogos e olhar esperto, capaz de encontrar humor no cotidiano queer, Barz consegue ao mesmo tempo divertir e educar o leitor, apresentando em suas tirinhas a vida de um elenco que representa os mais variados tipos: barbies, ursos, biscates, intelectuais… É difícil atravessar as situações apresentadas em Torta de Climão e não encontrar alguma situação que corresponde à vida do leitor. E não é apenas na diversidade de identidade de gênero e orientação sexual que Barz manda bem: seus personagens também apresentam uma ampla gama de etnias. Confira a seguir a conversa que o LADO BI teve com o autor por e-mail.
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LADO BI: Como e por que começou o Torta de Climão?
Kris Barz: Começou há uns 3 anos, de forma bem aleatória e sem organização alguma. Sempre achei que faltavam personagens gays nos quadrinhos. Quando havia, mesmo que a presença deles tivesse muito valor, não falavam das coisas que eu achava que seria legal falar a respeito. Ao invés de esperar alguém fazer o que eu queria, resolvi eu mesmo fazê-lo.
Comecei a pensar em criar meus próprios personagens e contar coisas que aconteciam comigo e com meus amigos, as coisas engraçadas e as tristes, usando as gírias que eu conhecia da comunidade LGBT, algumas referências culturais nossas e também abordando temas que fossem mais universais, como amizade e relacionamentos.
Fui criando aos pouquinhos, pois não tinha muito tempo livre. Tinha que trabalhar e pegar muito trabalho por fora (como designer gráfico e ilustrador) pra pagar as contas morando em São Paulo e no Rio. O processo foi longo e bem arrastado, testei muitos estilos de desenho, criei e joguei fora personagens. Às vezes ficava semanas ou meses sem tocar no projeto, até que, na metade de 2014, fiquei desempregado.
Passei 5 meses com pouquíssimo trabalho, na pindaíba e, ironicamente, com muito tempo livre. Procurei muito por emprego e nada dava certo. Resolvi focar então nos meus quadrinhos, pois senti que tinha um motivo pra eu estar desempregado. Nesses meses a inspiração veio forte e a criação desse projeto deslanchou. Desenhei muito e pude começar a postar as primeiras tirinhas na internet. Nos 2 primeiros meses de tirinhas postadas, apenas alguns amigos meus curtiram a página. Depois disso, as pessoas começaram a descobrir o trabalho, curtir, compartilhar, marcar os amigos e se identificar com o que os meus personagens estavam falando ou vivendo. Acho que isso fez toda a diferença pra milhares de pessoas terem contato com o Torta nos meses seguintes.
Kris Barz, autor de Torta de Climão
Kris Barz, autor de Torta de Climão
Você explora vários dos tipos clássicos do mundo LGBT em suas tiras. Tem algum que você ainda quer incluir? Não tem medo de estar reforçando uma imagem estereotipada do mundo gay ao fazer isso?
Não tenho medo, pois acredito que tanto estereótipos como não-estereótipos existem na sociedade. Se pararmos pra pensar, é uma discussão bem complexa. De onde vem o estereótipo? As pessoas que se encaixam neles reproduzem o que veem na mídia ou os estereótipos reproduzem o que há na sociedade? Essas perguntas valem para estereótipos de qualquer gênero ou orientação afetivo-sexual. Mais do que esses questionamentos que eu mesmo já me fiz muitas vezes, creio que quando um personagem é mostrado inúmeras vezes em situações diversas, ele se torna muito mais tridimensional do que o estereótipo do qual ele possa parecer representante, pois há muitas facetas na personalidade de uma pessoa (e de meus personagens). Conheci muita gente diferente em lugares diferentes que morei, pessoas assumidas, dentro do armário, pintosas, “fora do meio”… e por isso sei que o que eu coloco nos meus personagens é real.
Tenho aproximadamente 10 personagens fixos e tento explorar aspectos variados da personalidade de cada um em situações diversas, justamente para eles terem uma profundidade maior do que o limite que o estereótipo possa criar. Mesmo assim eu não creio que toda a comunidade estará representada. Pode parecer limitador, mas é – na verdade – o que eu acho lindo da comunidade LGBT ou mesmo do ser humano: essa gama infindável de personalidades, trejeitos e individualidades.
Quero incluir mais personagens sim. Gosto de criar personagens, suas motivações, interesses, históricos, contexto social e personalidades, mas é algo que eu preciso fazer com calma e estudo, para justamente não cair no estereótipo limitador.
Os leitores se identificam com os personagens? Escrevem para você dizendo “eu sou o Pedro”, “eu sou o Lino”? Tem algum personagem com que nenhum leitor quer se identificar? 
Essa pergunta tem muito a ver com a anterior. É possível se identificar com um personagem em certos aspectos dele e não se sentir representado nem um pouco por outros aspectos do mesmo personagem. Ao mesmo tempo é possível um leitor ou uma leitora se identificar totalmente com um deles a ponto de me mandarem uma mensagem dizendo “nossa, esse(a) personagem sou eu!” ou mesmo não se identificar com absolutamente nenhum personagem. E tudo bem isso acontecer.
Com qual deles você orna mais?
Eu me identifico com pelo menos alguma coisa de cada um dos personagens pois cada um deles tem algo de mim, mas ao criá-los eu fiz questão de em alguns deles criar detalhes na personalidade e opiniões com as quais eu não me identifico/concordo em nada. Os personagens são uma mistura de algumas coisas minhas com muitas outras coisas de amigos, conhecidos e enfim, de tudo o que observei ao longo do tempo.
Quanto das situações da tira vêm de situações verídicas? 
Poucas tiras são totalmente representações de fatos reais. Algumas outras são inspiradas e tem alguns detalhes que realmente aconteceram, onde eu aplico a mesma situação aos meus personagens e imagino como eles reagiriam. Outras tirinhas são baseadas em notícias que eu vejo e algumas outras são situações totalmente inventadas. Acho que é bem diversificado nesse sentido.
Seus amigos ficam com medo de verem suas vidas pararem no Torta?
Meus amigos não ficam com medo pois eu sempre altero nomes quando utilizo acontecimentos reais, além de geralmente não serem coisas das quais eles teriam vergonha. Também uso muita coisa embaraçosa que aconteceu comigo, pois acho que pra poder tirar sarro dos outros, preciso saber tirar sarro de mim mesmo.
Você tem o cuidado de equilibrar o lado didático com o lado diversão em seu trabalho? Qual é o ponto ideal desse equilíbrio, em sua opinião?
Tento ter o cuidado sim e ainda não sei qual é o equilíbrio. Acho que vou estar sempre em busca dele, pois pra mim os dois lados são importantes. Acho que se o projeto está evoluindo até então e mais gente está se identificando com ele, devo estar no caminho certo. Lembro com frequência de algo que Laerte me disse quando perguntei qual era o equilíbrio ideal entre o ativismo e a diversão no trabalho de quadrinista. Ela me disse que é ótimo ser ativista, mas para ficar atento para não endurecer o traço e a criatividade. Confesso que é uma batalha interna constante e ambos os lados pesam.
Você se preocupa com a possibilidade de Torta de Climão ficar datado? Isso chega a ser um problema?
Não me preocupo, e sei que algumas tiras podem soar ultrapassadas daqui alguns anos porque a cultura vai mudando e as gírias, por exemplo, também vão mudar. Mas creio que a maioria das tirinhas abordam temas que ainda serão recorrentes, como as que falam de família, amizade e amor. O que eu gostaria mesmo de ver acontecer são as tirinhas que tratam do preconceito se tornarem datadas por termos atingido um momento na sociedade em que isso não vai mais existir. Acho que vai demorar, mas ainda tenho esperança de que isso aconteça.
Por que há tão poucas mulheres no livro?
Os primeiros personagens eram todos homens cis gays e uma mulher heterossexual. Eram os mundos que eu conhecia melhor a ponto de escrever com fluidez e segurança. Com o tempo percebi que não poderia ter apenas aqueles personagens, pois a nossa vida é mais diversificada que isso. Logo nos primeiros meses em que o projeto foi ficando conhecido, apresentei a Mari e a Joana, casal de lésbicas. Após algum tempo introduzi a Aline, mulher trans. No caso dela eu tive que pesquisar muito sobre transexualidade e transgeneridade, o que eu vejo como algo positivo, pois até então sabia pouco a respeito e isso me ajudou muito a ter mais empatia por este grupo da comunidade LGBT. Mesmo ainda sendo uma personagem difícil de trabalhar como escritor por justamente não ser a minha realidade de homem gay cisgênero, continuo aprendendo e aos poucos desenvolvendo a personagem. Por serem tirinhas, uso poucos personagens por vez e preciso limitar a quantidade de personagens total para que a minha história continue fazendo sentido. Não acho que o Torta de Climão vá representar absolutamente todo mundo da comunidade LGBT, e não tenho esse objetivo: eu estaria criando um compromisso com a frustração (minha e de leitores/leitoras). Ao mesmo tempo que entendo que há muito mais a ser representado, também preciso manter minha autonomia artística. Acredito que a solução (e o que vai acabar acontecendo) é que mais projetos diferentes e de outros autores surjam e, com essa pluralidade de projetos pipocando, as pessoas sintam-se representadas.
Héteros também leem suas tiras? Se sim, qual é o retorno que você obtém deles? O que você gostaria que eles aprendessem com oTorta?
Sim, cerca de 10% dos meus leitores são agatês. Tenho um retorno muito positivo. Muitas das mulheres heterossexuais que lêem têm muitos amigos gays e lésbicas, e acabam se identificando com a personagem Ana, que é uma mistura de muitas das minhas amigas héteros em momentos diferentes da minha e da vida delas. Recebo mensagens positivas de homens heterossexuais também, e sinto que a pessoas mais novas, entre 18 e 24 anos, pensam de uma forma muito melhor e natural a respeito da homossexualidade. Isso me enche de esperança! Já recebi mensagens de ódio de pessoas preconceituosas também, mas… beijinho no ombro pra elas.
O que eu quero que todos façam ao ler minhas tirinhas, além de se sentirem entretidos, é repensar seus conceitos ou preconceitos, pensar a respeito de algo novo que talvez não tenham pensado ainda e aprender a ter mais empatia por qualquer pessoa ou grupo que seja diferente.
O que podemos esperar do Torta de Climão daqui pra frente?
Há tanta coisa que eu ainda pretendo fazer com o Torta de Climão, mas não tenho tempo suficiente! Uma graphic novel com meus personagens está prevista faz um tempo já, pois era uma das minhas primeiras ideias: criar uma história em quadrinhos mais extensa para explorar mais os personagens que as pessoas já conhecem. Traduzir as tirinhas para outras línguas está nos planos. Quero também fazer spin offs de persongens, e as possibilidades são muitas. Quem sabe sobre a adolescência do Bruno e como ele se aceitou como gay; como Tomás e Juca se conheceram na faculdade e tornaram-se amigos; os encontros sexuais do Lino pelos apps de pegação; a vida de casadas da Mari e da Joana ou como elas se conheceram. Só preciso agora me multiplicar pra poder escrever e desenhar tudo isso!

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