Nós já havíamos divulgado anteriormente por AQUI o trabalho do Hugo Canuto e ficamos muito felizes ao saber que ele merecidamente vai ser materializado. Confiram a matéria que rolou ontem no JUDÃO. (BP)
A releitura de ilustrações clássicas de heróis da Marvel, numa homenagem a Jack Kirby mas com divindades da mitologia iorubá no lugar dos super-heróis, começou na internet, virou pôsteres especiais e se transforma em HQ completa a partir de 2017
25 DE OUTUBRO DE 2016
THE ORIXAS: OS CONTOS DE ÒRUN ÀIYÈ VÃO VIRAR QUADRINHOS DE VERDADE
Por Thiago Cardim - JUDÃO
Graças à dupla Stan Lee e Jack Kirby, virou uma parada bastante comum para pessoas do mundo inteiro um mínimo de contato com a mitologia nórdica. Afinal, Asgard e seus habitantes como Odin, Thor, Loki, Heimdall e afins tornaram-se personagens recorrentes da Casa das Ideias.
Quando a gente fala, por exemplo, que uma organização na Islândia está construindo o primeiro templo pagão no país em mil anos, e o seu representante menciona “um deus de um olho só que cavalga em um cavalo gigantesco”, com corvos nos ombros, rola uma identificação imediata de QUEM ele está falando.
Mas agora, imagina só, sei lá, se de repente o próprio Jack Kirby resolvesse dar um pulo por aqui para transfigurar em super-heróis alguns dos grandes mitos da cultura afro-brasileira? Porque Thor tem lá o seu Mjolnir, mas Xangô também carrega o seu Oxé, um poderoso machado de duas lâminas.
Bom, isso já aconteceu. Quer dizer, ou foi QUASE isso. Não foi o Kirby. Mas sim alguém que fez questão de usar um traço BEM parecido com o dele.
Batizada de Contos de Òrun Àiyè (basicamente, a relação entre o Àiyé, que é o mundo físico, e o Òrun, o mundo espiritual), a iniciativa surgiu de maneira despretensiosa, quando o ilustrador baiano radicado em São Paulo, Hugo Canuto pensou em homenagear Jack Kirby no final de Agosto, justamente quando o mestre completaria seus 99 anos. Viria então a primeira arte, The Orixas, assim mesmo, misturando o português (Orixás) e o inglês (Orishas). Trata-se de uma releitura da capa de The Avengers #4, publicada em 1963, da qual Hugo tira medalhões como Capitão América, Homem de Ferro, Gigante, Vespa e Thor dos holofotes e os substitui por nomes como Iansã (Oyá), Ossain (Ossanha), Ògún (Ogum), Xangô e Oxaguiã (Ajagunã). Todos, obviamente, com a pegada dos desenhos clássicos do Kirby.
“O que mais admiro na sua obra é o imenso repertório visual, bebendo e misturando fontes que vão dos samurais aos Incas, passeando por diferentes culturas e traduzindo os mundos com seu olhar”, diz Canuto a respeito de Kirby, considerado um verdadeiro criador de mitologias. “Seu DNA inventivo e extremamente simbólico é um legado renovado a cada geração”. O autor afirma, em entrevista exclusiva ao JUDÃO, ter grande interesse pelos seus trabalhos menos conhecidos, como Eternos, Novos Deuses, os figurinos para peça de teatro Julius Caesar (de Shakespeare) ou The Lord of Light, mundo criado a partir da mitologia hindu. Foi então que Hugo resolveu imaginar “o que aconteceria se...” Jack Kirby resolvesse produzir uma saga baseada nas lendas da cultura afro-brasileira.
Com a repercussão positiva, o desenhista continuou brincando com este universo e surgiu a segunda arte, The Might Xangô, que ele descreve como tendo sido um estrondo. “Em uma semana mais de mil pessoas, adicionaram espontaneamente o perfil [no Facebook], muitas enviaram mensagens pedindo que fizesse os demais Orixás, falando sobre o que sentiram, do quanto haviam se identificado, da representatividade na cultura pop... Todo artista quer apenas estar em contato com a própria alma, mas quando há essa conexão com o público, algo surpreendente acontece”.
Não é a primeira vez em que Canuto flerta com a mitologia do continente que fica do outro lado do Atlântico. “Como alguém nascido na Bahia, a influência africana na cultura é parte de nossa identidade, e para além do aspecto religioso, influencia os hábitos, o falar, a gastronomia”, explica o ilustrador que, aos 10 anos de idade, já tinha lido Lendas Africanas dos Orixás, clássico do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger, com arte do argentino naturalizado brasileiro Hector Julio Páride Bernabó, mais conhecido pela ALCUNHA de Carybé.
Formado em arquitetura pela Universidade Federal da Bahia, o ilustrador autodidata diz que ali aprendeu muito do que depois levaria para o campo da arte. “Mas foi nos quadrinhos e no cinema que formei parte do meu repertório, principalmente pelo traço de Jack Kirby, John Buscema, Walt Simonson e os europeus, como Moebius e Toppi. Essa era, de certo modo, a minha escola em um período anterior ao da internet, quando precisávamos ir nos sebos cavar gibis clássicos”, conta.
Logo que terminou a faculdade, ele resolveu fazer o curso de férias na Quanta Academia de Artes e descobriu as muitas possibilidades profissionais do seu dom para o desenho. “Alguns anos depois, em 2015, decidi abraçar de vez essa vocação e deixar um cargo estável no serviço público para morar em São Paulo, desenvolver técnicas e trabalhar em um projeto autoral”. O tal projeto é a graphic novel A Canção de Mayrube, saga de fantasia épica inspirada nas mitologias que formaram a América cuja primeira edição foi lançada ano passado no FIQ. Para fazer esta obra, o cara estudou muito da mitologia dos iorubás, um dos maiores grupos étnicos da África Ocidental, vindos do sudoeste da Nigéria, do Benim (antiga República do Daomé) e do Togo. Dos iorubás é que vieram os nagôs, nome dado aos negros escravizados e vendidos na antiga Costa dos Escravos, entre os séculos XVI e XIX, e que foram trazidos em massa para o Brasil.
“Em 2014, acompanhei, ainda como arquiteto de uma empresa local, questões ligadas à proteção da Pedra de Xangô, monumento histórico do candomblé que foi vandalizado”, afirma, ao lembrar que já havia a vontade de contar uma história que abordasse a cultura afro-brasileira. “Cheguei até a escrever o argumento”. Mas o projeto nunca saiu do papel. Quando começou a fazer as artes do Contos de Òrun Àiyè, uma na sequência da outra, se empolgou bastante com o retorno. “O público que me procura é muito diverso, ABARCANDO desde leitores de quadrinhos, pessoas ligadas às religiões de matrizes africanas, professores, estudantes...”. Vieram retornos positivos da Nigéria e dos Estados Unidos, além de brasileiros que residem em países como Áustria, Espanha, Portugal e Itália.
Diante da repercussão e dos pedidos para aquisição, ele encontrou uma gráfica de excelente qualidade, abriu espaço para encomendas no Facebook oficial e começou a produzir os pôsteres sob encomenda. A primeira tiragem, de 100 exemplares, esgotou em duas semanas. Os valores arrecadados com estes materiais iniciais foram doados para o Ilê Aiyê, mais antigo bloco afro do carnaval de Salvador e que mantém um grupo cultural de luta pela valorização e inclusão da população afrodescendente. “A ideia é continuar, de maneira colaborativa, essa parceria, estamos vendo a possibilidade de criar uma oficina voltada à produção de quadrinhos para jovens”.
A outra ideia, no caso, é ampliar o Contos de Òrun Àiyè, que em 2017 vai ser transformado em uma HQ completa, através de uma campanha de financiamento coletivo via Catarse. “No início de novembro, lançaremos a campanha para viabilizar a publicação da revista, que terá histórias fechadas, formato americano e cerca de 48 páginas. Dependendo do desempenho da campanha, poderemos agregar mais conteúdo ao material. Queremos que seja algo de qualidade e valor acessível”.
Assim que decidiu produzir o gibi estrelado pelos personagens que já ilustrou e mais alguns novos que devem surgir em breve, ele voltou para a Bahia com o objetivo de estudar, consultar bibliografias e conversar com alguns autores. Embora deixe claro que esteja fazendo uma narrativa que é inspirada na mitologia iorubá mas evitando torná-la uma obra religiosa, ele ressalta que está conduzindo um processo de pesquisa com todo o cuidado e respeito, dialogando não apenas com estudiosos mas também com lideranças do candomblé no país. Afinal, ele sabe que existem determinados setores que “demonizam” a cultura afro-brasileira. “Quero homenagear e afirmar uma herança e cultura que formam nossa identidade como povo”.
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