Algumas discussões nascem pra não ter fim.
Por conta de uma entrevista recente, Greg Rucka despertou uma controvérsia que andava velada, restrita a visões que, mesmo célebres, eram marginais sobre quem é e o que define a identidade da maior heroína dos quadrinhos. Afinal, a Mulher-Maravilha é ou não homossexual?
Na entrevista, o escritor das recentes edições de DC Universe Rebirth – Wonder Woman, Greg Rucka, não deixa nenhuma dúvida de que sim. Afinal, é mais do que natural aceitar que uma mulher que nasceu e cresceu numa ilha habitada por mulheres, tenha passado por relacionamentos amorosos e sexuais plenos com outras mulheres.
Certo?
Altamente provável. Mas talvez não seja assim tão natural que essa concepção se torne uma nova ortodoxia nos quadrinhos.
Controvérsias, polêmicas, disputas sobre os elementos dominantes dos personagens são foco de acalorados debates entre os fãs há anos. Até por décadas, discutir a sexualidade dos heróis acontecem nos mais variados espaços, do boteco aos fóruns de internet.
Até aí, nada demais, pois além de polêmicas divertidas, elas são ficcionais, território do imaginário coletivo e imune àquela poluição partidária que está virando regra na terrinha do “foi/não foi golpe”.
Ou pelo menos é como gostaríamos…
Também no território da sexualidade, uma das controvérsias mais manjadas que existe nos quadrinhos é sobre a natureza da relação entre Batman e Robin: seriam eles um casal gay?
A questão foi base de um dos processos mais revolucionários na história dos quadrinhos, agravado pela publicação do livro Seduction of the Innocent, de Frederick Wertham. A dúvida sobre a orientação sexual de Batman e Robin contribuiu para o surgimento da Era de Prata, com o reboot de vários heróis da DC como o Flash e Lanterna Verde, além da fundação da Marvel Comics como conhecemos hoje.
A criação do Comics Code, mais do que um selo de qualidade empregado pelas editoras, foi um símbolo de que aquele terreno – o imaginário das aventuras em quadrinhos – merecia supervisão de altos poderes, a atenção devida de autoridades prontas a interferir caso a essência daquela mensagem fosse maculada pela má interpretação de seus autores.
Ora, de um jeito ou de outro, seja por meio de selos de garantia, da convocação de comitês de investigação, ou da mera exposição de argumentos em fóruns, revistas ou botecos, todas são uma busca por ortodoxias, por cânones, por dogmas.
Tanto quanto as controvérsias, essa história é uma velha conhecida.
Em 325 d.C., o imperador romano Constantino I, reuniu as principais autoridades ecumênicas (“universais”) na cidade de Niceia (atual İznik, na Turquia) para deliberar sobre uma questão que dividia seus domínios: seriam Deus e Jesus Cristo parte da mesma essência ou seria o Cristo uma entidade separada do Verbo, portanto “menor” que o Senhor em pessoa?*
Liderado pelo representante do Papa Silvestre, Hósio de Córdova, o Concílio reuniu cerca de 300 bispos de várias regiões, que se debruçaram sobre a questão, uma discussão sobre mistérios e fé, cujo resultado seria a definição, por um lado, de ortodoxias e, de outro, daquilo que se tornariam heresias.
O Concílio de Niceia, documentado por aquele que é considerado o pai da história da Igreja Cristã, Eusébio de Cesaréia, foi nada menos que o primeiro grande Concílio da Igreja e definiu um dos pilares fundamentais do credo (ou crença) Cristã: a trindade entre Pai, Filho e Espírito Santo.
De tabela, já que estavam todos ali reunidos, os bispos também fixaram no calendário a data da Páscoa, “a qual devia ser sempre num domingo depois da primeira lua cheia a seguir depois do equinócio da primavera”. Junto com a definição da trindade, as decisões do Concílio também são conhecidas como o “Credo Niceno” ou “Símbolo Niceno”.
“Mas oi? O que isso tem a ver com o gibi da Mulher-Maravilha e do Batman gay?”
Tem a ver que, tal como o sexo dos anjos (uma expressão bastante medieval), a busca por ortodoxias (a “opinião” correta) e, consequentemente, heresias (ou seja, a opinião que difere da correta, e portanto errada) dos heróis de quadrinhos é expressão de uma herança histórica. E ela caracteriza nossa identidade enquanto membros de uma sociedade, perceba você isso ou não.
É por isso que – entre outros fatores – menos do que saber a orientação sexual da Mulher-Maravilha, importa mais se isso será considerado cânone ou não, ou seja, se é válida para a “Cronologia” ou não. Mas, nesse caso, vale muito mais a decisão do editor-chefe do que propriamente o debate entre os fãs – ainda que isso possa influenciar as decisões editorais.
Algumas vezes as controvérsias que surgem nos quadrinhos são “espontâneas”, surgem a despeito das intenções dos autores das histórias. Exemplos não faltam. Como estas estão:
Quando o Ciclope abandonou a Madelyne Pryor (grávida!) pra voltar ao X-Factor
Quando o Coringa deixou a Batgirl paralisada (e depois a violentou)
Outras vezes existem nos quadrinhos aquelas polêmicas “planejadas”, deliberadas, calculadas para chamar a atenção do público, o que tem um impacto direto nas vendas das revistas. Por exemplo:
Ricardito viciado em drogas
Homem de Ferro alcoólatra
Vespa sendo agredida pelo marido, o Homem-Formiga
De modo similar às controvérsias planejadas, existem aquelas bastante forçadas, mais do que estimular a curiosidade, são concebidas para chocar o leitor. Por exemplo:
Os amantes incestuosos Mercúrio e Feiticeira Escarlate do universo Ultimate
O Asa Noturna abusado pela Tarantula
Ou então, existem aquelas concepções trazidas nos quadrinhos se tornam marcos, referências, regras, ou – no jargão dos Concílios – cânones que definem não só os personagens, mas a orientação das ações que eles vão ter em várias histórias que sucedem aqueles eventos narrados.
Alguns são particularmente violentos, até mesmo excessivos, traumas que deixam lições importantes tanto para escritores como para todo mercado de quadrinhos. São tragicamente indispensáveis. Exemplos disso são histórias como:
A morte de Alexandra DeWitt em Laterna Verde (Kyle Rayner)
O estupro de Sue Dibny em Crise de Identidade
As mitologias sobre as quais nos cercamos, sejam elas religiosas ou laicas (como os quadrinhos), dialogam com o que temos de mais íntimo. Expor e debater sobre estes elementos podem nos envolver em vários níveis, emocionais e intelectuais.
Ao debatermos, mesmo sem a necessidade dos certames oficiais de um Concílio, participamos de um ritual sem fim: a sublimação de uma mensagem, o aprendizado de lições valiosas. O que também não deixa de ser bastante religioso. Mas essa é uma história que fica pra outro dia.
* Um bom começo para conhecer a história do Concílio de Niceia pode ser encontrado em LYON, H.R.. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, pp. 272-273.
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