Por Savio Queiroz - Plano Infalível
Um olhar rápido, despretensiosamente, poderia ver uma relação umbilical entre literatura de cordel e histórias em quadrinhos. Poderia, inclusive, acreditar que um é a evolução do outro, ou outra postura: choque entre os dois suportes de informações e entretenimento. Em diálogo com a pesquisadora Geisa Fernandez, me foi sugerida a produção de um texto analítico sobre essa relação entre cordel e quadrinhos, faria parte de uma publicação estadunidense, mas acabou por se tornar um artigo que breve será publicado nos anais do evento da ANPUH-BA deste ano.
As duas mídias possuem longas e curiosas histórias e aqui eu pretendo tecer um pouco sobre elas. Buscar, quem sabe, expor os encontros e desencontros desses dois produtos sociais e culturais, e entender como eles são expressões humanas e reflexos de suas específicas culturas. Para que nossa viagem torne-se interessante, vamos fazer, como nas histórias comparadas, os percursos de ambas. Como nas Vidas Paralelas de Plutarco, Quadrinhos e Cordel vão encontrar em suas construções traços reconhecíveis e também diferenças perceptíveis.
Em 1760, em solo russo, uma gravura feita a partir de uma peça de madeira entalhada, uma xilogravura, e era reproduzida e compartilhada pelos opositores do czar Pedro I. Morto após uma conspiração política, a imagem compartilhada era uma chacota sobre seu enterro. O autor desconhecido produziu um enterro de um gato, sendo levado por um cortejo fúnebre de camundongos, fazendo menções indiretas ao déspota falecido e seus seguidores ou mesmo o povo. É uma ilustração jocosa de um Lubok, literatura popular e subversiva da Russia, que registrava seus costumes, anedotas, uma infinidade de coisas. E, claro, fazendo bastante chacota disso.
Esse tipo de material, como temos no século XIX os desenhos de Angelo Agostini fazendo zombaria aos políticos e mesmo ao imperador Pedro II no Brasil, tem eu seu “DNA” os traços que serão compartilhados por quadrinhos e cordel. Neles vemos o noticioso risível, as representações de ideias e valores de uma dada camada da sociedade, que comungam maneirismos que antes eram bastante comuns aos trovadores e suas canções. Na verdade, desde Homero (ou talvez antes dele), as tradições orais, cantadas, eram registradas em documentos poéticos para que as gerações seguintes tivessem acesso aos seus dizeres. Diversas técnicas, como a própria xilogravura e posteriormente a litogravura, possibilitaram a acessibilidade desses materiais que em tempos remotos eram frutos demorados do trabalho artesanal de copistas (geralmente da igreja).
A literatura de cordel nasceu dessa necessidade de compartilhar informações, poesia e xilogravuras por populares, numa verdadeira revolução na impressão. Mas não chamemos literatura de cordel, apesar de ter se popularizado tal nome, chamemos Literatura Popular em Verso, como preferem estudiosos como Joseph Maria Luyten e Mario Souto Maior. E ela já teve outros nomes, como pliegos soltos (Espanha), Colportage(França) e Literatura de Cegos (Portugal). Aposto que neste último você levou um susto e está até então se perguntando a razão disso (não é piada de português). Essa literatura chistosa era perseguida em Portugal, mas uma lei promulgada por Dom João V em 1749, permite que a Irmandade do Menino Jesus dos Cegos de Lisboa possa vender os folhetos. O nome pegou.
Esses folhetins contendo canções, poesias, versos, vieram para as Américas e sofreram modificações para atender novas demandas. Tais impressos tipográficos tornaram-se bastante quistos na região nordeste do Brasil, onde se popularizaram a ponte de serem, praticamente, produções identitárias. E dentre tantos temas, heroicos, satíricos, moralistas, onde cornos, diabos logrados, mulheres perdidas, cangaceiros, e, claro o cabra. Essa identidade local, uma readequação do cabron espanhol, marca a masculinidade do sertanejo nordestino pela crueza, rudeza, pela resistência que o caprino que lhe emprestou o nome também aprendeu a ter na caatinga. Como propus no texto a ser publicado, “o cordel é o registro do imaginário e da memória do cabra”. Um belo exemplo é a obra de Ferreira Gullar chamada João Boa-Morte: Cabra marcado pra morrer, de 1962.
As histórias em quadrinhos, por sua vez, seguiram caminho diferente, muitas vezes como parte integrada de periódicos e posteriormente graduando o formato de revista. Diferente de sua prima, a Literatura Popular em Verso, as histórias em quadrinhos preferiram o casamento da linguagem visual em sequência e o texto em prosa. Com sua inserção num mercado de entretenimento (por vezes barateado e direcionado para público infantil), os quadrinhos também se popularizaram e também promoveram dispersões de ideias, de valores, mas seus mecanismos de leitura tiravam qualquer semelhança, distanciando o seu parente, o cordel. Como registro imagético de chacotas nos jornais periódicos do século XIX até enxurradas de revistas publicadas mensalmente (ou em outras categorias de periodicidade) nos séculos XX e XXI, configurando-se em suporte de leitura próprio, com suas singularidades. Como muito recente, sua história é mais conhecida e encerro seu histórico aqui sem prejuízo.
São diferentes, com características diferentes, exigindo mecanismos de leitura diferentes, são, enfim, propostas diferentes. Existem, obviamente, aproximações entre Literatura Popular em Verso e Histórias em Quadrinhos, como também ocorreriam em outras mídias, como cinema e teatro, pintura e fotografia. Mas suas diferenças não foram taxativas para uma incompatibilidade ou mesmo incapacidade de diálogos. Ambos estavam fazendo uso constante da fantasia, inserida criativamente num universo real e reconhecível. Neste ponto, nada impede seu produtor de beber de outras fontes para construir narrativas imaginativas como A Peleja de Lampião com Besouro Mangangá, de Victor Alvim Itahim Garcia, A chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco (ouça aqui a versão interpretada por repentista aqui!), e a inusitada Alien e Predador versus Lampião, de Izaias Gomes de Assis!
Outras vezes são os quadrinhos que vão buscar nos folhetins as inspirações para suas produções. Todo aquele que entra em contato com a singular arte de Flavio Colin, quadrinhista brasileiro, que trabalhando com quadrinhos desde a década de 50, com o tempo deixou fluir sua arte icônica. Seu traçado rebuscado em linhas grossas e formatos geométricos, uma estética tão própria que o visual de seus desenhos são reconhecível identidade. Colin tem por berço os quadrinhos nacionais de terror, de onde tirou o gosto e a habilidade no uso das sombras e a constate presença narrativa de lendas rurais e folclores regionais. Produziu obras belíssimas, como Estórias Gerais (pela editora Conrad em 2007 e mais recente pela editora Nemo em 2012) e O Boi das Aspas de Ouro (lançada em 1997 pela parceria entre a editora Escala e a editora Opera Graphica). Para o pesquisador Alberto Ricardo Pessoa, a sua arte característica, de uma estilização própria, faz parte da segunda fase do artista. Facilmente a confundimos com xilogravuras.
Justamente essa estética chamada artenaïf é que vai prevalecer enquanto característica visual chave da Literatura Popular em Prosa. O maneirismo livre, sem o domínio de conhecimentos prévios ou formalidades artísticas convencionais, era bastante autoral. Tornou-se, com o tempo, também uma característica identitária não apenas para a produção das capas dos folhetins, como, também, uma estetica nordestina. Há, em tais traços, similaridades, também sendo chamada de arte primitivista, consegue ligar, através de um reconhecimento visual, artistas como José Francisco Borges e Waldomiro de Deus. Seu uso, entretanto, na Indústria Cultural, é feito como estética visual regionalisma, geralmente nordestina, em campanhas promocionais e festividades.
Mas outros quadrinhos propuseram um diálogo direto, objetivo, fazendo uso de diversos elementos presentes na Literatura Popular em Verso. O cordelista Fabio Sombra e o quadrinhista João Marcos resolveram unir suas paixões (e competências) na produção de duas histórias em quadrinhos preciosamente sintonizadas com o cordel: Sete Histórias de Pescaria do Seu Vivinho e A Pescaria Magnética do seu Vivinho e Outras Histórias(ambas lançadas pela Abacatte Editorial em 2011 e 2013, respectivamente). E as inter-relações vão além. O projeto Fanzine nas Zonas de Sampa, faz usos de narrativas em quadrinhos e literatura de cordel como instrumento pedagógico, tendo ganho o troféu HQMix na categoria Grande Contribuição em 2012. Essa manufatura autônoma e autoral, veja-se, é o ponto de encontro entre as duas linguagens e pode ser aqui apontada como familiaridade.
O cordel (a literatura popular em verso), tem um parentesco maior quando a historia em quadrinhos se chama fanzine. Na verdade fanzine é um formato bem plural, como me lembrou a pesquisadora Danielle Barros, podendo ser feito por diversas linguagens que não apenas os quadrinhos. No caso, para este texto, vou manter aqueles que são majoritariamente ou totalmente feito em quadrinhos. Esse formato específico, o fanzine, tem por característica primordial o “faça você mesmo”, ou seja, é uma produção artística artesanal e autoral que se vale dos meios acessíveis não industriais. Sua produção é local, por conta disso bastante carregada de regionalismos, de traços reconhecíveis aos seus redutos. Assim como o cordel, o fanzine é vendido muitas vezes pelo próprio autor, utilizando material barato e com narrativa totalmente independente. Um grande especialista em fanzines é o pesquisador Gazy Andraus que, inclusive, interfere na produção através de um conceito de “quadrinhos poético-filosóficos”.
Não é mais uma relação de ambivalência e de forças entre as duas mídias ou mesmo de uma produção popular em conflito com uma produção erudita. Ambas podem ser populares e eruditas e até mesmo esse binarismo não é tão sólido e seguro assim. Podemos repensar, como o historiador Carlo Ginzburg, que se trata de uma circularidade do que outrora foi mais homogêneo e que promoveu duas vertentes dispares, “um relacionamento circular feito de influências recíprocas” (GINZBURG, 187, p.13) e que a criatividade e o prazer em fazer nunca impuseram limites. Que não sejam gêmeos ou mesmo irmão consanguíneos, a parentalidade distante ainda permite “trocas subterrâneas” (GINZBURG, 1987, p. 230) entre as duas mídias e isso só faz bem a nós, leitores, que temos pratos variados numa mesma e saborosa refeição.
Dedico este texto ao multi-artista Bule-Bule,
repentista querido que seu sucesso não mude.
Que recentemente recupera feliz a saúde,
que meu pouco trato com a arte não seja rude.
Que sei escrever e desenhar tudo o que pude,
já que não sei tocar nem pandeiro e nem alaúde.
repentista querido que seu sucesso não mude.
Que recentemente recupera feliz a saúde,
que meu pouco trato com a arte não seja rude.
Que sei escrever e desenhar tudo o que pude,
já que não sei tocar nem pandeiro e nem alaúde.
Saiba mais:
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Cia. das Letras, 1987.
PELLEGRINI, Américo. Gravuras populares e quadrinhos. Revista Comunicação e Arte. Cidade Universitária, São Paulo, 1994.
Cordelteca (acervo de literatura popular em verso)
João Boa Morte – Cabra Marcado pra Morrer
PELLEGRINI, Américo. Gravuras populares e quadrinhos. Revista Comunicação e Arte. Cidade Universitária, São Paulo, 1994.
Cordelteca (acervo de literatura popular em verso)
João Boa Morte – Cabra Marcado pra Morrer
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