[Onomatopeia Entrevista] BOOM! Beto Potyguara: explorando os quadrinhos e suas infinitas possibilidades
Dos quadros de tiras e páginas de gibis para a sala de aula. Esse é o caminho pelo qual o professor[1] Beto Potyguara tem levado o debate sobre temas e elementos das Histórias em Quadrinhos, bem como suas possíveis aplicações pedagógicas. Além de educador, Beto é cartunista e roteirista com colaborações em diversas publicações e tem militado em diferentes frentes, atuando como um fomentador da sétima arte; promovendo eventos, palestras e cursos que ajudam a popularizá-la e possibilite o surgimento de um novo público leitor.
Roberto Flávio Gomes de Lima, o Beto Potyguara, nasceu em Natal (RN) no ano de1971 e, na década seguinte começou a criar suas próprias HQs. Nos anos 2000, colaborou com charges, tiras e ilustrações em diversos periódicos como Tribuna do Norte (2000), O GOL (2003-2007), Jornal do Torcedor (2003), O Illuminati (2009) e o site Olé Net (2000). O artista gráfico é criador das séries de tirinhas Poderói, Pelotinha, Forte Poty, Gaijin e Klã Destino; autor de Carcará, cabra pió num há (indicado ao Prêmio Ângelo Agostini, em 2010) e Os Notáveis e outras histórias (2011), teve ainda HQs publicadas em duas edições da Revista Maturi.
Em 2009, fundou a República dos Quadrinhos, coletivo com o qual foi responsável pelas exposições O que não está no gibi, está por aqui! e Mitos e Heróis: releituras contemporâneas; promoveu o I Fórum de Arte Sequencial de Natal, em 2011, e idealizou o Prêmio Poty (com duas edições realizadas em 2010 e 2011), criado para valorizar e resgatar a produção da nona arte no RN.
O ativismo do professor, artista e pesquisador em prol das Histórias em Quadrinhos é tema da entrevista a seguir.
Onomatopeia: Qual foi seu primeiro contato com as histórias em quadrinhos?
Beto Potyguara: Foi na minha infância, muito antes do letramento. Era uma época mágica, pois as revistas eram bem baratinhas e havia uma infinidade de títulos disponíveis em minha casa: Disney, Hanna e Barbera, MAD, Bonelli, Mortadelo e Salaminho, Popeye, Pernalonga, Brasinha, Gasparzinho, Riquinho, Recruta Zero, Mandrake, Fantasma, Os Trapalhões e muito pouco de super-heróis ou da Turma da Mônica. Os jornais também forneciam outro filão bem diversificado.
Onomatopeia: Quando começou a produzir suas próprias narrativas e que motivação você tinha para contar histórias?
Potyguara: Minha memória mais remota, nesse sentido, é a de estar no colo da minha mãe lhe dizendo as falas que ela deveria colocar nos balões das minhas primeiras HQs (cadernos de lombada canoa que se convertiam em revistinhas). Isso, antes do letramento. Creio que a forte influência dos quadrinhos e das séries animadas de super-heróis me impulsionou a essas primeiras incursões como editor mirim. Os títulos eram em sua maioria de super-heróis cômicos, plagiados e o meu selo editorial era a FLARVEL…dã!
Onomatopeia: Você dedica uma atenção especial às tiras de humor, como surgiu seu interesse por elas? O que você considera mais atraente nesse gênero e formato?
Potyguara: A admiração pelas tiras veio do contato com os jornais impressos desde a infância. Colecionei-as por muitos anos, até o advento da Internet. E o que mais me fascina neste gênero, é a sua capacidade de síntese narrativa, visual e textual. O minimalismo gráfico das séries de humor em contraste com o detalhismo, requinte e realismo das tiras de aventura.
As minhas primeiras tiras surgiram no período universitário (1996). Comecei produzindo charges do cotidiano do Departamento de História da UFRN e a galera curtia. Daí tomei gosto e resolvi me aventurar no gênero. A passagem pelo Jornal O Gol (2003-2007), como chargista esportivo, também veio aprimorar a minha capacidade de síntese.
Onomatopeia: Quando escreve para outro desenhista, qual o tipo de roteiro você costuma escrever? O roteiro mais robusto e descritivo ou lança o argumento e deixa o ilustrador livre para criar em cima do texto?
Potyguara: No meu processo de criação, os títulos tendem a ser bem herméticos, repletos de referências visuais, legendas explicativas e dados extras. Pelo fato de serem produzidos de forma isolada e sem uma perspectiva imediata de publicação.
Agora, na medida em que, uma parceria se desenvolve, é natural que haja mais confiança, harmonia e identificação entre a dupla. Como eu transito nos dois lados da moeda, tento sempre me colocar no lugar do outro, adequando a escrita de acordo com a parceria. Respeitando e valorizando o potencial artístico e a maturidade narrativa de meu colega.
Onomatopeia: Você é fundador do coletivo República dos Quadrinhos, quando e como foi idealizada essa iniciativa? Quais eram suas expectativas e o quanto delas foi alcançado com o projeto?
Potyguara: A “República” enquanto coletivo nacional surgiu em 2009, tendo como inspiração o movimento protagonizado pela Image Comics, na segunda metade da década de 1990. Lógico que sem as mesmas pretensões editoriais e dimensões de atuação. O nosso foco era o intercâmbio entre artistas, a divulgação e a publicação dos trabalhos de seus membros.
O coletivo teve uma vida efêmera, mais intensa e bem sucedida (2009-2013). Nesse curto período, proporcionamos exposições coletivas; lançamos cerca de 90 publicações (virtuais em sua maioria); criamos situações de discussão política, educativa e de mercado em Natal, por meio de eventos e de um Fórum específico; criamos uma premiação para os artistas gráficos do Estado (o Prêmio Poty); e tudo isso, contribuiu para colocar a produção local novamente em evidência na mídia, inclusive, pela mídia especializada nacional.
As duas indicações ao Prêmio Angelo Agostini (2010) e os vários convites para participações em eventos regionais e nacionais, após a intrépida e inédita ida ao Festival Internacional de Quadrinhos em Belo Horizonte (2011), demonstram concretamente que estávamos no caminho certo.
As propostas sempre foram bem audaciosas, e como citamos acima, em sua maioria, lograram êxito. A mais evidente e que se consolidou ao longo dos anos, foi o da defesa do uso das histórias em quadrinhos como ferramenta pedagógica em sala de aula – com a minha atuação e a de Wanderline Freitas, e, mais recentemente, a de Milena Azevedo.
Onomatopeia: Um dos seus quadrinhos que mais chama atenção pela mistura das histórias em quadrinhos com elementos da literatura de cordel é Carcará, cabra pió num há. Você já era familiarizado com os elementos temáticos utilizados no quadrinho ou precisou fazer uma pesquisa especifica? Você considera esse o seu trabalho mais bem sucedido?
Potyguara: Sim, eu já era leitor de cordel. E o fato de também ser quadrinista, facilitou a transposição do roteiro para esse formato. A pesquisa nesse caso foi especificamente visual. Focada nas xilogravuras, em busca de referências para o traço que viria a ser utilizado nesta publicação.
Sem dúvida, até o momento, é o mais bem sucedido, tanto pela crítica, quanto pelo público. O regionalismo e o ineditismo da proposta contribuíram e muito, para o êxito da obra.
Onomatopeia: Você tem um extenso histórico na promoção de eventos de quadrinhos. Qual o seu objetivo ao organizar um evento do gênero?
Potyguara: Ao nos propormos a produzir quadrinhos, torna-se imprescindível que minimamente exista um público para ler esse material. E na melhor das hipóteses, um mercado consumidor consolidado que propicie o reinvestimento na área, até que possa vir a surgir o tão esperado lucro. E na existência desse cenário favorável, o que fazer? Rezar, reclamar, murmurar ou outros ARs?!
Optei pelo caminho de proporcionar eventos que possam suscitar o interesse do público leigo ou consumidor dos Comics, Mangás e dos títulos da MSP, em conhecer a produção local e quiçá, obtê-las. Mostrar que, por trás dos títulos e dos personagens, existem nomes e faces, que merecem ser conhecidas e reconhecidas. E o nosso caminhar, tanto como educador, quanto produtor cultural, sempre seguiu essa premissa.
Onomatopeia: Fala um pouco sobre o trabalho que você desenvolveu na Rede Potiguar de Televisão Educativa e Cultural (RPTV).
Potyguara: A experiência na RPTV foi muito gratificante, pois foi um trabalho bem eclético e que me proporcionou absorver um pouco de cada área em que atuei. Entre 2015 e 2017, contribuímos na parte de produção e edição de conteúdo audiovisual; na criação de playlists, de artes gráficas, de vinhetas, de storyboards e de um jingle; na criação de uma proposta para um programa infantil; na consultoria em exposições; e em palestras e oficinas.
Considero que a nossa maior contribuição foi a participação à frente do Núcleo de Artes Visuais e de Museologia Social. Fato que oportunizou a criação de um circuito itinerante de artes visuais pela SEEC, que compreendia os municípios de Natal, de Nísia Floresta, de Currais Novos e de Açu (onde priorizamos exposições gráficas); e na exposição física sobre a representação indígena nas HQs brasileiras.
Onomatopeia: Como pesquisador, você tem estudos relacionados a representações do negro e dos indígenas nos quadrinhos brasileiros. O que você destaca de mais curioso nessas pesquisas?
Potyguara: No tocante a representação e representatividade das minorias nas HQs, eu diria que infelizmente, a maioria dos artistas gráficos, conscientemente ou não, contribui mais na perpetuação de certos estereótipos pejorativos presentes no imaginário popular, do que na discussão e desconstrução destes, em suas produções.
Em linhas gerais, eu diria que a representação do nativo é mais amena, altruísta e benevolente se comparada com a dos afrodescendentes. Predominando a linha narrativa do “bom selvagem”, do(a) guerreiro(a), defensor(a) da natureza. Mas, em contrapartida, persiste a representação do nativo da época da chegada de Cabral. Mesmo o personagem sendo apresentado como “civilizado”, urbanizado, ambientado no momento atual, aparece seminu, geralmente descalço, com um corte de cabelo “xavante” e utilizando pinturas cerimoniais no seu cotidiano.
Pelo ineditismo e caráter inusitado, eu destacaria as publicações do Vovô índio (1934), criação de Cristovam Camargo, um personagem de inspiração nacionalista e integralista, que teria sido criado para competir e substituir o Papai Noel norte-americano (sem êxito algum) em nosso país. As aventuras do indiozinho Bretã (2013), ilustrada por Joacir Dias Xavier e elaborada na forma bilíngue (português e kaingang), que traz a adaptação de três histórias verídicas narradas por crianças indígenas da Aldeia Três Soitas (Santa Maria – RS). Primeira obra em que os nativos aparecem na coautoria, ainda que indiretamente. E, bem recentemente, a história sinalizada plurilíngue (português, terena, libras e língua de sinais utilizada pelos surdos da etnia terena), Sol: a pajé surda (2021), produzida por Ivan de Souza e Julia Alessandra Ponnick. Inspirada na história real do povo Terena (PR).
O negro por sua vez, até os meados dos anos de 1960, sempre foram representados de forma marginalizada, preconceituosa e estereotipada. Nas décadas seguintes, surgiram alguns personagens críticos, como o Pivete, de Edmar Viana, e os Miudins, de Sidney Carvalho. Ainda assim, nos dois casos, o visual estereotipado permaneceu.
A partir dos anos 2000, começaram a surgir novos olhares e novas possibilidades narrativas e estéticas. Em grande parte, pela contribuição de autores afrodescendentes, como Estevão Ribeiro (Rê Tinta), Julião (Dona Isaura) e Gió (Mirandinha). Destaco ainda, o importante papel das obras de André Diniz (O Quilombo Orum Aiê, Chico Rei, Morro da Favela, A Cachoeira de Paulo Afonso e O Negrinho do Pastoreio), tanto por sua contribuição na criação de um espaço no mercado editorial (brasileiro e europeu) para títulos com personagens e temáticas afrodescendentes; quanto por nos apresentar uma nova estética para o negro nos quadrinhos.
Onomatopeia: Você tem um histórico de envolvimento em vários projetos que aliam a educação com as histórias em quadrinhos, como exposições e oficinas para crianças em fase de alfabetização. Qual você considera o papel das histórias em quadrinhos, tanto como incentivo à leitura, quanto como prática criativa para os estudantes em fase de alfabetização?
Potyguara: O traço antecede a fala; como o desenho, a escrita; e a leitura de imagens, a dos signos linguísticos. Esse é um ponto de partida. O uso das artes gráficas pode auxiliar no desenvolvimento de várias competências dos estudantes. Estimulando a curiosidade, o raciocínio lógico e o senso crítico; propiciando situações de socialização, de desinibição, de exercício da autonomia, de sua oralidade; além de aumentar o interesse nos conteúdos das aulas e de incentivar a produção artística autoral.
Na Gibiteca Potiguar ao lado do professor Luiz Elson Dantas, desenvolvemos o Projeto “Aprendendo com a Arte dos Quadrinhos”, onde ministramos oficinas para crianças das séries iniciais do Ensino Fundamental. Em sua maioria, não alfabetizadas. O que não as impediu de produzirem roteiros para suas próprias histórias em quadrinhos e pequenas animações em stop motion.
O uso de imagens e a produção de desenhos precisam ser melhor compreendidas e utilizadas pelos educadores em sua prática pedagógica. São formas de expressão e de linguagem que podem ser fortes aliadas no processo de letramento.
A criança pode não saber escrever ou ler as falas nos balões, por exemplo, mas vai saber descrever o que vê e a criar algo novo, em cima disso. Dessa forma, os quadrinhos podem se tornar um importante elemento facilitador no processo de alfabetização tanto infantil, quanto adulto.
Onomatopeia: Além destes, desde 2018, você ministra o curso Quadrinhos e Educação, um curso para professores. Como foi a adesão e o engajamento dos educadores?
Potyguara: Vem sendo muito satisfatória. A maioria geralmente é leiga e se surpreende tanto pela complexidade do tema, quanto pela infinidade de possibilidades de aplicação. A ideia da formação é a de se aprender fazendo. De que cada cursista construa o seu próprio repertório de atividades e o ponha em prática.
Conscientizando o educador das etapas existentes para o uso das HQs de forma responsável e segura. Que parte da pesquisa, seleção e adequação do material a ser utilizado; passando por técnicas de sensibilização para o uso e produção de histórias em quadrinhos; além da orientação de como executar a leitura de imagens em sala de aula.
Alguns professores que passaram pelo curso conseguiram ir além das nossas expectativas, levando as suas experiências bem sucedidas ao campo acadêmico, no mestrado.
Onomatopeia: Cite uma onomatopeia (que você goste da grafia, sonoridade ou que tenha um significado especial para você). A proposta da entrevista é ter uma onomatopeia no título.
Potyguara: Todas as onomatopeias da abertura da série clássica televisiva do Batman, de Adam West, me agradam e me marcaram profundamente enquanto leitor e admirador do gênero.
E por minha natureza explosiva (em todos os sentidos possíveis da aplicação deste verbete), creio que um “boom!” seria bem apropriado!
[1] Professor da Rede Estadual de Ensino, Bacharel e Licenciado em História pela UFRN, Especialização em Artes Visuais (2012) e Técnico em Design Gráfico (2006), Contabilidade (1993) e Magistério (1990).
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