Capa de "Notas sobre Gaza", trabalho mais recente de Joe Sacco, autor que constrói reportagens em quadrinhos
Por PAULO RAMOS
Há um senso comum em torno do trabalho do jornalista e desenhista maltês Joe Sacco. Costuma-se apregoar a ele o surgimento do diálogo entre jornalismo e quadrinhos.
O assunto costuma vir à tona em congressos de comunicação, anualmente em trabalhos de conclusão de curso de jornalismo ou quando há um novo trabalho dele.
É o que ocorre com o lançamento de "Notas sobre Gaza" (Quadrinhos na Cia., 420 págs., R$ 55), reportagem sobre o passado da relação tensa entre israelenses e palestinos.
Sacco, na obra, busca esclarecer um massacre de civis por tropas israelenses na década de 1950. O assunto se resumia, até então, a notas de rodapé nos livros de história.
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"Notas sobre Gaza" é seguramente um dos melhores do autor. Ele se enfronha na região da Faixa de Gaza de hoje para recuperar relatos dos fatos de ontem.
Mescla uma narrativa que transita entre o presente e o passado e que reproduz o estilo de reportar desenvolvido pelo desenhista, radicado nos Estados Unidos.
Para contornar a dificuldade de expor os fatos na linguagem dos quadrinhos, Sacco se torna um dos protagonistas da reportagem.
Os bastidores da apuração se confundem com a matéria em si. Intencional e assumidamente subjetivo, ele impregna a exposição com suas impressões e sentimentos.
Esse processo de condução da reportagem aproxima o trabalho de alguns gêneros caros ao jornalismo. O mais evidente é a grande reportagem, no caso a narrada no suporte livro.
Outro é o chamado jornalismo gonzo, popularizado pelo norte-americano Hunter Thompson (1937-2005).
Thompson se envolvia a fundo com as fontes da história e contava os fatos da forma mais subjetiva e pessoal possível. Como faz o autor de "Notas sobre Gaza".
O uso da imagem, característica dos quadrinhos, aproxima o jornalismo de Sacco de algumas matérias de TV, em que o repórter se mostra tanto quanto a notícia em si.
Híbrido de tudo isso, o jornalismo feito por Joe Sacco não deixa de ser inovador. Foi o primeiro a narrar um fato - em quadrinhos - ao longo de páginas e páginas de um livro.
Por estar umbilicalmente vinculado a esse modo de reportar, do qual é o principal representante, costuma-se atribuir a ele o pioneirismo da relação jornalismo e quadrinhos.
Trata-se de um dogma que, de tão reproduzido, adquire ares de fato. Não é. As charges, que para alguns constituem gêneros jornalísticos, já serviriam como contraponto.
A relação entre jornalismo e quadrinhos vem de muito longe. Pelo menos, desde o século 19. Inclusive no Brasil.
Os jornais brasileiros ainda encontravam um rumo dois séculos atrás. Sabia-se que a caricatura funcionava bem. Delas para as charges foi um passo.
Mas limitar o diálogo entre os dois campos apenas às charges seria outro equívoco. Uma investigação aos jornais da época confirma isso.
Um recurso usado então era o de desenhar os fatos, como uma história em quadrinhos. Um dos que faziam isso era o ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910).
Um exemplo foi quando reproduziu um acidente com um trem. O leitor podia ver, no(s) dia(s) seguinte(s), a cena por meio da representação visual do desenhista.
Esse método de desenhar cenas persistiu no século 20 e foi (re)descoberto pela imprensa brasileiro nas últimas décadas.
Julgamentos famosos que proíbem a entrada de fotógrafos costumam ser reportados com a presença de um ilustrador do jornal na plateia, pondo no papel os momentos chave.
Casos de crimes ou acidentes também são narrados em quadrinhos.
Os jornais e revistas usaram o recurso à exaustão no crime da menina Isabella Nardoni, assassinada pelo pai e pela madrasta em março de 2008.
Especialistas na área gráfica, inclusive de outros países, têm recomendado aos jornais o uso da linguagem dos quadrinhos para tornar os fatos mais acessíveis aos olhos do leitor.
Parte da imprensa brasileira tem se valido do recurso nos últimos anos. Sites noticiosos também. Isso, não custa reforçar, é fazer jornalismo em quadrinhos.
O que Joe Sacco faz é um jornalismo em quadrinhos, e não o jornalismo em quadrinhos. Mas ele guarda o mérito de ter popularizado o recurso e a forma de narrar em livro.
Trata-se de um reportar, assumidamente subjetivo. É um molde. Há outros, inclusive no Brasil. São fazeres do jornalismo. No plural mesmo, e não no singular.
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