Por Giorgio Cappelli - GHQ
Nosso texto de hoje começa com um “era uma vez”.
Era uma vez um jovem chamado Frank, quinto de sete filhos da família Miller. Frankzinho, como o conheciam, passava horas e horas abraçando detetives que andavam armados e cheiravam a cigarro. Outras vezes, agarrava-se a sujeitos de roupas coladas e músculos definidos.
Calma, não é o que você está imaginando. Deixe-me tentar de novo: o pequeno Frank adorava ler romances policiais e histórias em quadrinhos de super-heróis. Lia em tal profusão que acabou tomando gosto pela coisa e decidiu tornar-se escritor e desenhista.
Cheio de coragem, partiu de sua terra natal, Maryland, atrás de um emprego. Nada de sonhar baixo; mirava nas grandes editoras dos Estados Unidos: Marvel e DC. Como não arranjou nada por lá, acabou se contentando com as menores mesmo.
Começou em 1978, na Gold Key Comics, editora especializada em quadrinhos baseados em seriados antigos (Besouro Verde,Jornada nas Estrelas, O Túnel do Tempo etc.) desenhando uma história de Além da Imaginação. Isso o levou a ter seu talento rapidamente reconhecido, e logo os chefões da DC o colocaram para fazer uma HQ de guerra de uma só página. Muitas páginas depois, assinou trabalhos mais extensos, com meia dúzia de pranchas, ainda no ano de 1978.
Seu primeiro serviço para a Marvel foi o lápis de 17 páginas para a série John Carter, Warlord of Mars, baseada em um livro de Edgard Rice Burroughs, criador de Tarzan. Aliás, John Carter vai chegar aos cinemas em breve! Mas não vamos nos desviar do assunto.
Com um pé na Marvel, Frank pôde ilustrar aventuras do Homem-Aranha e do Demolidor. Mais exatamente no número 158 deDaredevil (tradução desnecessária), o artista passou a inserir elementos até então inéditos nas HQs de super-heróis: um clima de filme noir, cenários centrados no bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen (Cozinha do Inferno), transformando a cidade do divertido Aranha num local sombrio. Quem sabe um reflexo da vida do próprio Miller; nascido em um Estado tipicamente agrário, naturalmente ficava deslumbrado com uma metrópole.
Aliás, deslumbramento parece uma constante para esse artista. Enquanto produzia as aventuras de Matt Murdock, ajudando na arte e, em seguida, nos roteiros (fato que promoveu a revista, de bimestral para mensal), o jovem Frank teve um contato imediato com a série Lobo Solitário, o famoso mangá de Kazuo Koike (roteiro) e Goseki Kojima (desenhos). Pra quê?! As dezenas e dezenas de páginas sem balões nem legendas marcaram-no a ponto de deixá-lo “subitamente apaixonado” pela cultura japonesa.
Bastou esse contato para nosso herói não enxergar mais nada na frente que não a estética dos mangás. Em 1982, Miller carregou todo esse deslumbramento para a minissérie Wolverine (que aqui no Brasil ganhou o subtítulo Dívida de Honra, pela Panini).
Nesse trabalho, como muita gente sabe, o X-Men mais invocado e mais popular da equipe ganha uma namorada nipônica, garras no formato de espadas de samurai, viaja para a terra de Kurosawa e se mete com ninjas e a Yakuzá. Detalhe: essa namorada, Mariko, tem o mesmo nome da jovem japonesa que se envolve com um ocidental no romance Shogun, de James Clavell.
A aventura em quatro partes, realizada em parceria com Chris Claremont, deu novos contornos à personalidade de Logan, até então visto pelo próprio Frank como pouco mais que um Taz falante. Vale observar que a arte-final de Joseph Rubinstein melhorou sensivelmente o traço “publicitário anos setenta” de Miller.
A nipomania frankmilleriana acabou transbordando também em seu trabalho posterior, Ronin, de 1984, uma mistura de ficção científica com lenda, repleta de todos os (bons) cacoetes de um mangá tradicional, que não recebeu o merecido reconhecimento.
Apesar disso, o sucesso nas remodelagens de dois personagens da Marvel permitiu que o rapaz de Maryland se arriscasse pela DC. Em 1985, chegou a sugerir uma atualização nas pratas da casa: Superman, Batman e Mulher Maravilha. Sugestão negada.
No ano seguinte, entretanto, a editora mudou de ideia e convidou o desenhista/roteirista a fazer um upgrade no Batman. Surgiu, então, aquela que muitos consideram sua obra máxima: Batman – O Cavaleiro das Trevas, sucesso de público e crítica do qual já se disse tudo: divisor de águas dos quadrinhos, gerou imitações inferiores, inaugurou o conceito de graphic novel e mais uma série de chavões dos quais pouparei os fãs de quadrinhos que me leem.
Essa publicação deixa patente que a experiência com Claremont e Wolverine fez todo o amor de Frankie pelos mangás desaparecer atrás de uma bomba de fumaça ninja. A partir de Cavaleiro das Trevas, troca-se a narrativa em imagens pela profusão de legendas em primeira e terceira pessoas. Vemos esse expediente utilizado exaustivamente em Batman – Ano Um,A Queda de Murdock e Demolidor – o Homem Sem Medo. De repente, o sujeito que revigorou personagens e revolucionou a linguagem dos comics desapareceu. Tudo o que se seguiu – Sin City, Hard Boiled, 300, Robocop 2 e 3, sem falar no unanimemente execrado Cavaleiro das Trevas 2 – resume-se a violência gratuita. Nenhuma inovação, nenhuma sutileza, nada de roteiros inteligentes, zero de surpresa. O ápice desse vale de lágrimas veio com a adaptação para os cinemas de The Spirit, que não guarda semelhança nenhuma com os quadrinhos originais do grande Will Eisner.
O que teria acontecido com Miller? Ficou preguiçoso? Acomodou-se? Perdeu a mão? Esqueceu o cérebro no metrô? Este articulista espera que o artista que tantas contribuições deu à nona arte tenha sido apenas temporariamente substituído por um sósia extraterrestre e que volte logo, mostrando que é um dos melhores no que faz (e o que faz de melhor é bastante divertido), retornando apenas com uma desagradável lembrança de ter se submetido a uma sonda retal alienígena.
Giorgio Cappelli está tradutor e roteirista e torce para que o espírito (e não the Spirit) do Will Eisner apareça à noite no quarto do farsante que tomou o lugar de Miller e lhe puxe as pernas.
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