quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Hossexualidade nos quadrinhos brasileiros

Por Henrique Magalhães - Marca de Fantasia

As histórias em quadrinhos em sua pluralidade expressiva têm servido a muitos propósitos, de simples entretenimento, com suas aventuras fantásticas, ao cada vez mais prestigiado recurso pedagógico. Sua primeira manifestação foi humorística, mas logo se descobriu sua enorme capacidade de comunicação e possibilidade exploratória de recursos gráficos e textuais.

Inexplicavelmente, os quadrinhos têm sido um fenômeno criativo majoritariamente masculino, como uma aptidão quase nata dos marmanjos para o exercício desse tipo de fantasia. Às brincadeiras de casinha e bonecas, os garotos preferem se projetar em seu heróis, cujas aventuras refletem, na maioria das vezes, os anseios de afirmação juvenil. Por outro lado, as meninas encontram em algumas personagens infantis o ideal de transgressão pela força e pela inteligência, com idealizações em personagens como Mônica e Luluzinha, por exemplo.

Quase sempre submetidas a um forte rigor moral, as histórias em quadrinhos, em particular dirigidas aos jovens, se limitam a reproduzir a ideologia dominante, com seu teor conservador de ratificação das normas sociais. Por esse motivo se constata um enorme vácuo num tema que encontra resistência em sua abordagem nas mídias “massivas”, a homossexualidade. Tabu ainda predominante, o tema tem tido avanços em programas televisivos, no cinema, no teatro e na literatura, mas encontra uma visão distorcida ou quase completa omissão quando se trata de revistas em quadrinhos.

É certo que algumas produções, em particular nos Estados Unidos, têm ousado em abordar o tema de forma positiva, no sentido de atingir a diversidade de seu público. Os principais universos de super-heróis já estampam personagens gays, em relacionamentos estáveis e com a dignidade que esse grupo social reivindica. Numa atualização que se pensava improvável, já é possível ver o casamento de personagens homens em revistas para um amplo público masculino.

No Brasil não se chegou a tanto; a tentativa mais aproximada de tratar a homossexualidade numa publicação de grande circulação se deu com a revista Tina, de outubro de 2009. De maneira subtendida, apenas sugerida, um jovem aventa a possibilidade de ter um companheiro, deixando ao público seu entendimento e interpretação. A repercussão do caso se deu mais na mídia que na própria história da revista, que não prosseguiu com o tema. Maurício de Sousa declarou que se tratava de um banco de ensaio, de tentativa de abrir a revista à contemporaneidade, mas que não iria propor nada adiante de seu tempo.
Se tomarmos a tendência no país do mercado se dirigir ao filão do público adulto, veremos que também nesse setor o número de publicações é insignificante. Salvo a editora Via Lettera, que lançou três álbuns do alemão Ralf König (O homem ideal, 1998; Como coelhos, 2008; E, agora, os noivos podem se beijar!, 2007), que tem se notabilizado por criar quadrinhos com temática gay, a maioria das publicações vêm à luz no meio independente.
      

Entre abril de 2006 e junho de 2007 foram lançadas seis edições da revista Jack the fag, pela editora independente SM Editora, de Jaú, São Paulo, sob a responsabilidade de José Salles. A revista traz roteiros de Salles e desenhos de Manu Tom, que tratam da marginalidade no submundo homossexual. A série, no entanto, foi abandonada na sexta edição, por mudança de perfil editorial. Pela Marca de Fantasia sairia em 2005 o álbum Vidas solitárias, Com roteiros de Marcelo Marat e desenhos de Emanuel Thomaz. Esta obra adapta contos de José Salles, que em várias passagens se reporta a relações homossexuais.

Há também algumas experiências anteriores, sempre veiculadas no meio alternativo ou por pequenas editoras comerciais. É memorável a abordagem de Henfil sobre a homossexualidade na edição 7 da revista Fradim, de 1976. Em plena ditadura militar, quando o engajamento político exaltava o machismo e a virilidade, Henfil transformou seu Fradim em homossexual, tratando de forma humorada e irreverente um tema que era também um calo para as cabeças vanguardistas do país. Pelas Edições GLS, Marcio Baraldi lançou em 2002 o livro Todas as cores do humor, que destaca a personagem lésbica Pit-Bull Tina, criação sua em parceria com a editora Laura Bacellar.
A partir dos anos 1980 surgiu com força na imprensa diária e nas revistas em quadrinhos personagens urbanos e malditos no traço de Angeli, Laerte e Adão Iturrusgarai. Angeli apresentaria em 1983 o personagem Nanico, companheiro de luta de certa esquerda revolucionária, que encarava os novos tempos de abertura política assumindo sua homossexualidade até então reprimida. Em 1985 Adão faria uma hilária sátira com os cowboys gays Rocky e Hudson, desmontando o clichê de masculinidade dos filmes de faroeste. Laerte, mais tarde, faria seu personagem Hugo assumir o travestismo como expressão de suas fantasias sexuais.
   
Marcadamente ligado ao universo underground, a obra de Marcatti também enfocaria a homossexualidade, realçando seu viés escatológico. Com o poeta marginal Glauco Mattoso, lançaria em 1990 o álbum independente As aventuras de Glaucomix, o pedólatra, mostrando uma feição pouco palatável dos quadrinhos para a maioria dos leitores, mas provocadora e instigante, que se tornaria um clássico das HQ nacionais.

Ainda na década de 1970, nossa personagem Maria ganhava a simpatia do público paraibano não só por suas tiras políticas, mas por tratar a sexualidade de forma não convencional. Mariacompartilhava seu mundo e seu carinho com sua amiga Pombinha, numa expressão de companheirismo que muitas vezes chegou às vias da homoafetividade. É marcante a edição de seu álbum A maior das subversões, que se refere à força transgressora do amor, não necessariamente do amor romântico convencional. Por conta dessa edição, lançada em 1983 de forma independente, para muitos leitores Maria se trata de uma personagem lésbica, o que não era realmente a intenção do autor, mas que não descarta essa possibilidade.
Atualmente a editora Marca de Fantasia é a única que se dedica, entre outras abordagens das histórias em quadrinhos, a lançar álbuns com temática homossexual, visando atingir um público carente de publicações que tratem do tema de forma sincera, positiva, crítica e bem humorada. Do próprio editor saíram Rendez-vous (2005, 2a. ed.) e Macambira e sua gente(2008, 3a. ed.). Em Rendez-vous encontramos as personagens Virgens de Tambaú, onde homens se vestem com roupas femininas, numa referência a um famoso bloco carnavalesco da Paraíba. Com Macambira e sua genteo tema da homossexualidade é o centro das tiras humorísticas de RicoMaçola e Macambira, em que o autor reflete sua vivência homoafetiva.

De Anita Costa Prado, com desenhos de Ronaldo Mendes, foram lançadas pela Marca de Fantasia três edições da personagem lésbica Katita, a saber, Katita: tiras sem preconceito (2009, 2a. ed.), Katita: o preconceito é um dragão (2010), e Katita: maré-cheia... de sereia (2012). A própria Anita lançou em autoedição o título Katita: humor e malícia (s/d). O meio da homossexualidade feminina é abordado de forma coerente e graciosa por Anita, que transformou sua personagem numa referência para os quadrinhos nacionais.

O universo dos ursos, uma categoria referente aos gays masculinos, másculos e geralmente fortes ou gordos, teve uma edição com a obra de Rafael Lopes Ber the bear, lançada em 2010 pela Marca de Fantasia. Essas edições tem, é claro, se restringido ao seleto público da editora paraibana, que produz em pequenas tiragens e faz circular suas publicações de forma dirigida, por intermédio de seu sítio na internet (www.marcadefantasia.com). Isso demonstra que, apesar do sucesso dos lançamentos da Marca de Fantasia, as editoras comerciais não têm interesse ou não percebem o potencial dos quadrinhos que abordam a homossexualidade, relegando-os ao campo das publicações “marginais” e confidenciais.

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