Uma iniciativa indiana recente criou uma história em quadrinhos onde a protagonista – Prya Shankti – recebe super poderes da deusa Parvati (esposa de Shiva), após sofrer um estupro brutal e por consequência disso ser expulsa de casa e humilhada pela polícia. Usando recursos de realidade aumentada e uma forte campanha de marketing que inclui #standwithpriya (eu apoio Prya), essa ação tem o objetivo de aumentar a visibilidade e a consciência da Índia e do mundo para um problema grave que é mascarado pela cristalização cultural dos papéis sociais.
Já dissemos aqui que algumas vezes os quadrinhos discutem e criticam o status quo, seja ele social, político ou econômico. Mas como qualquer forma de narrativa, na maior parte do tempo eles apenas refletem o status quo através da visão de mundo de seus autores. O papel das mulheres nos quadrinhos também já foi alvo de nossos comentários em todos os seus estereótipos e reducionismos.
Observamos que a maioria das referências ao estupro nas histórias produzidas para o primeiro escalão de heróis da Marvel e da DC vitimaram homens e têm como perpetradoras mulheres com intenções questionáveis. Os papeis estão invertidos. Elas abusam dos heróis para gerarem filhos (Talia X Batman ou Shado X Arqueiro Verde), ou apenas por desejo (Umar X Hulk) – nos três casos, os heróis estão entorpecidos sem a possibilidade de impor resistência. Embora esse argumento tenha uma função narrativa clara – apresentar o herói bem intencionado fragilizado e manipulado – as estatísticas fora do universo das histórias em quadrinhos apresentam um quadro oposto. As vítimas reais da violência sexual são as mulheres e as crianças e adolescentes (independente do sexo).
Algumas vezes Marvel e DC se arriscaram a tratar desse assunto de forma mais próxima à realidade, trazendo à tona esse grave problema, fomentando o debate e ampliando o olhar dos leitores (embora o desfecho desses conflitos sejam majoritariamente o trauma, a vingança e a morte):
01 – Sue Dibny (esposa de Ralph Dibny, o Homem Elástico) – Arthur Light (Dr Luz) –Crise de Identidade (DC Comics – 2004)
Talvez a mais tocante abordagem dos quadrinhos mainstream sobre violência sexual. Sue Dibny é violentada e assassinada por Arthur Light*. A cena é forte e a dor física/humilhação/assassinato de Sue e a dor emocional de Ralph são retratadas de forma bastante visceral no roteiro de Brad Meltzer e arte de Rags Maorales.
02 – Barbara Gordon (Batgirl) – Coringa – A Piada Mortal (DC Comics – 1988)
Esse é polêmico porque o estupro não fica explicitado, mas a violência sexual é escancarada. Alan Moore sempre trabalha com violência, sexualidade, identidade, gênero e relações de poder. Ele repete a dose em Watchmen (abaixo) e na Liga Extraordinária (Mina Murray – Homem Invisível – Mr Hyde).
03 – Sally Jupter (Espectral) – Edward Blake (Comediante) – Watchmen (DC Comics – 1986)
Mais uma vez Alan Moore explora o tema de forma direta, apesar de romanceada, já que o estupro leva a uma gravidez e por consequência a introdução de uma nova personagem que é crucial para a história. De qualquer forma a vida de Sally fica marcada para sempre pelo agressão sofrida.
04 – Mary Jane (namorada do Homem Aranha) – Camaleão – Spectacular Spider-Man #245 (Marvel – 1997)
J.M. DeMatteis (que escreveu A Última Caçada de Kraven) assina essa história onde a guerra entre o Aranha e o Camaleão levam o vilão a atacar as pessoas próximas ao herói. Mary Jane percebe a trama e se defende, mas fica o trauma. Coincidência ou não essa história se chama Crise de Identidade.
05 – Janet van Dyne (Vespa) – Henry Pym (Golias/Jaqueta Amarela) – Avengers # 213(Marvel 1981)
No roteiro de Jim Shooter, Henry Pym (naquele momento o Jaqueta Amarela) enfrenta um julgamento dentro dos Vingadores por seu comportamento (incluindo a criação de Ultron). Ele desconta sua frustração batendo em Janet que o denuncia levando à sua expulsão dos Vingadores.
As consequências para os perpetradores de violência sexual são igualmente violentas, como no caso do Dr. Luz que é lobotomizado por Zatanna e do Comediante que é assassinado por Ozymandias. A lógica das histórias em quadrinhos é bastante binária, mesmo assim nossa herança cultural se manifesta – o Coringa, que volta sempre a ser internado no Asilo Arkham, é um personagem tão “querido“ que os leitores põe em dúvida se houve ou não violência sexual (o personagem seria tão louco que isso não se aplicaria a ele) – e isso mostra como negligenciamos/minimizamos esse tipo de violência.
Todas essas historias nos fazem repensar os papéis sociais e isso é positivo. Quadrinhos podem ser um espelho da sociedade mas também podem nos inspirar a sermos melhores. Iniciativas como a história de Prya Shankti devem ser divulgadas e apoiadas – Quadrinheiros #standwithpriya!
* Só uma resalva tardia – Sue Dibny não morre pelas mão de Arthur Light. O estupro acontece no passado da narrativa de Crise de identidade. Quem mata Sue (que estava gravida) é a ex-esposa de Ray Palmer (Electro), Jean Loring.
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