Uma maldição antiga ameaça a Ponte Hercílio Luz, em Florianópolis, e cabe ao “super-quase-herói” Justiceiro Joceli salvar o maior símbolo da capital, em uma narrativa repleta de espionagem, comédia e aventura. Este é o enredo de Justiceiro Joceli e a Ponte de Prata, uma história em quadrinhos (HQ) baseada em um personagem da vida real. O funcionário da Justiça Federal e tricampeão de kart Joceli Righi foi transformado em herói durante uma brincadeira entre amigos. Para imortalizar o justiceiro, o jornalista Romeu Martins e o cartunista Victor Vic transferiram a realidade para 25 páginas de ficção publicadas em 2014. Essa foi a segunda vez que a dupla participou de um projeto juntos. Em novembro de 2013, eles lançaram a história sobrenatural Domingo, Sangrento Domingo.
Romeu e Victor não são os primeiros a se arriscar no mundo das HQs em Florianópolis. Em setembro passado, as ilustradoras Rebeca Acco e Waleska Ruschel também tiveram a oportunidade de expor suas histórias ao público. Muiraquitã e a fúria do Anhangá conta a história de um jovem índio enfrentando uma ameaça de extinção do seu povo. Já Nível Zeroum universo em que todos nascem com super poderes é o cenário principal da história de Lia. Os enredos das narrativas chamaram atenção durante um evento na capital. “Participo de um projeto chamado Desenhe Aqui e houve a possibilidade de encontro com uma editora. Levei minha ideia, eles gostaram e investiram”, conta Waleska.
O Desenhe Aqui ocorre mensalmente desde 2011 e reúne ilustradores, desenhistas, pintores e grafiteiros para troca de ideias, técnicas e experiências. Para Kayuá Waszak, um dos criadores do projeto, o objetivo do evento é diminuir a distância entre os artistas. “Desenhar é algo solitário. Normalmente é só você e o papel. Nossa intenção é justamente acabar com isso. Fazer todos desenharem juntos, interagindo e comentando a arte um do outro”. Criado por ele e por Davi Leon Dias, o Desenhe Aqui já teve 35 edições e é responsável também pela publicação de Justiceiro Joceli e a Ponte de Prata e Domingo, Sangrento Domingo.
Apesar de já existir em grandes cidades do país como São Paulo e Belo Horizonte, o mercado de HQs ainda é novo com quatro HQs lançadas. Os responsáveis pelas produções recentemente publicadas encontram dificuldades na hora de encarar a atividade como profissão. “Infelizmente a maneira como grande parte da sociedade encara quadrinhos resulta em pouco comprometimento por parte de investidores e impede muitos autores dedicados de viver apenas disso”, relata Waleska, que também trabalha como professora de desenho no Senai. Assim como ela, além de viver dos quadrinhos, Victor Vic recorre a outros tipos de ilustrações para se sustentar. “É bem ampla a quantidade de categorias em que consigo trabalhar. Faço livros, convites de casamento, caricaturas e charges”, conta Victor.
A primeira vista, pode não parecer, mas o trabalho de Victor se relaciona diretamente com as histórias em quadrinhos. A charge foi um dos primeiros contatos do Brasil com o estilo. O modelo de sátiras, representado também nas caricaturas, se consolidou com as populares tiras de jornal e resultou na primeira HQ brasileira, O Tico-Tico, de 1905. Nos Estados Unidos, país de origem dos quadrinhos, não foi diferente. Tudo começou em 1895 com a chamada Yellow Kid (O Menino Amarelo) do cartunista Richard F. Outcault. Mais tarde, o gênero virou sucesso naquele país com super-heróis clássicos como Batman e Homem-Aranha. Em outros lugares do mundo, o mangá – estilo de quadrinho japonês – Dragon Ball e histórias mais recentes como Sandman, do britânico Neil Gaiman, também conquistaram legiões de fãs.
Hoje os quadrinhos são escritos em todas as partes do mundo e lidos por diversos tipos de leitores. Segundo Waldomiro Vergueiro, fundador e coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos, o público leitor do gênero é composto por jovens entre 11 e 25 anos, que são divididos em sete categorias. Elas vão dos leitores eventuais, que usufruem, mas não têm predileção pelo meio, aos fanáticos, que sabem tudo sobre história, personagens e produção do quadrinho. “A leitura de histórias em quadrinhos, de maneira imediata, não traz prejuízos. Ela passa a ser problemática quando interfere nas interações sociais, profissionais e em atividades cotidianas, como tomar banho. Mas acredito que ela traz, possivelmente, mais benefícios que malefícios”, alerta Talissa Müller, mestre em Psicologia, especialista em análise experimental do comportamento.
Entre os benefícios desse tipo de literatura está o incentivo a leitura do público infantil. Para Waleska Ruschel, “os quadrinhos providenciam um ritmo narrativo diferente, linguagem visual mais específica e clara e um potencial de imersão maior”, o que costuma cativar as crianças. Profissionais envolvidos na produção das histórias em quadrinhos, como a própria Waleska e Kayuá Waszak, começaram a se interessar pelo gênero ainda na infância. “Acho que as revistas em quadrinhos têm um grande papel na minha escolha profissional e no meu dia a dia. Fruto de um interesse que surgiu com os clássicos Calvin e Haroldo, Revistas Disney eTurma da Mônica”, conta Kayuá.
A revista Turma da Mônica foi criada em 1970 e estima-se que já vendeu mais de um bilhão de gibis. O quadrinho conta a história de Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e seus amigos no fictício bairro do Limoeiro. A série, que começou a ser publicada pela editora Abril, hoje é vendida pela Panini Comics e já foi traduzida para 14 idiomas. Com produtos licenciados em 40 países, a Turma da Mônica inspirou desenho animado do canal Cartoon Network, produtos alimentícios e de higiene e até uma rede de lojas nos anos 1980. Além disso, resultou em 27 filmes, 23 álbuns musicais, 35 jogos e três parques temáticos. A história é escrita pelo ex-repórter policial Maurício de Sousa e, ao longo dos anos, se tornou a maior referência em quadrinhos do Brasil.
Feminismo nos quadrinhos
Mônica é uma personagem decidida, cheia de agressividade e com pouca paciência. Contrariando o papel tradicional doméstico e submisso dado às mulheres nos quadrinhos desde a década de 40, ela acaba tornando sua história em uma espécie de HQ feminista. O feminismo nas histórias em quadrinhos é uma tendência que vem surgindo nos últimos anos. Seja em pequenas alterações no figurino da Batgirl, que passou a ser mais funcional e menos sensual, até a grande mudança do personagem Thor. Impedido de empunhar seu martelo, agora a escolhida para exercer o papel do deus nórdico é uma mulher.
O universo dos quadrinhos também vem sendo invadido pelo sexo feminino no lado de fora das páginas. As ilustradoras Rebeca Acco e Waleska Ruschel são o exemplo claro disso em Florianópolis. “Por vezes cruzar estes ambientes pode ser desconfortável, e uma força maior de autoras e ilustradoras nos quadrinhos resulta inevitavelmente em uma mudança no paradigma tradicional deles, feitos majoritariamente masculinos pela indústria norte americana. Acho que é extremamente benéfico, mas como toda mudança, pode incomodar alguns. De qualquer jeito, acredito que isso só vem a contribuir para o mercado e quanto mais diversa a base de autores, melhor a representatividade da sociedade como um todo na mídia”, declara Waleska.
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