Por Fernando Paiva - Teletime
A revolução digital que sacudiu a indústria fonográfica na última década se aproxima agora do mercado editorial. As vendas de e-books já representam cerca de 10% do mercado nos EUA e devem ultrapassar 50% dentro de cinco anos. O hábito da leitura está migrando das páginas impressas para as telas de computadores, laptops, e-readers, tablets e também dos celulares. No Brasil, as três primeiras lojas de livros digitais para celulares nascem neste quarto trimestre de 2010: Saraiva, Gato Sabido e MoBooks. Seu maior desafio é construir um modelo de negócios que seja atrativo para editoras, operadoras, livrarias digitais e, obviamente, para o consumidor.
Para vislumbrar a transformação que se avizinha do mercado editorial tradicional, é necessário compreender como ele opera hoje. Compete às editoras escolher os títulos que são lançados e firmar contratos com os autores, para os quais repassam em média 10% do faturamento com o livro, a título de direitos autorais. É comum escritores de renome receberem um adiantamento desse valor antes mesmo do lançamento do livro. As editoras se encarregam do trabalho de produção do livro, que inclui revisão, diagramação, desenho de capa e impressão, que geralmente é terceirizada, pois a maioria não tem gráfica própria. A produção e a impressão do livro correspondem a algo entre 6% e 8% do preço do exemplar. Para a distribuição às livrarias é comum as editoras contratarem distribuidoras especializadas, que abocanham entre 15% e 25% da receita. Os livros são entregues em regime de consignação, ou seja, as editoras só recebem por aqueles que tenham sido efetivamente vendidos. Em média, as livrarias ficam com 45% do preço de capa. Esse percentual pode ser maior quando se trata de grandes redes varejistas. Para complicar, existe no mercado editorial a prática de se pagar “jabá” para as livrarias em troca de maior destaque para os livros nas vitrines. Ou seja, no fim das contas, as editoras têm uma margem de lucro próxima a 15% sobre o preço de capa. Vale lembrar que livro é isento de impostos no Brasil.
À primeira vista, a digitalização dos livros é benéfica para as editoras, pois elimina os custos de impressão e de distribuição. Entretanto, todas tratam o assunto com extrema cautela. Alonso Alvarez, diretor da Libre, associação que reúne cerca de cem editoras brasileiras de médio e pequeno porte, explica o motivo: “As editoras têm medo de perder o controle sobre seu conteúdo, tal como aconteceu na música”. O consultor e autor Ricardo Neves utiliza uma comparação histórica para descrever a situação: “As editoras veem os e-books da mesma forma que monges copistas viam a prensa de Gutemberg”.
Diante da insegurança das editoras, coube às livrarias na Internet dar o primeiro passo para fazer o negócio de e-books acontecer. Foi assim nos EUA, onde a Amazon, para estimular a leitura em telas, desenvolveu seu próprio e-reader, o Kindle. O mesmo caminho foi seguido pela gigante Barnes & Noble, com seu e-reader Nook. Fabricantes tradicionais de eletro-eletrônicos, como a Sony e a coreana iRiver, também criaram suas linhas de e-readers. Embora a maioria das vendas de livros digitais ainda aconteça para leitura em desktops, aposta-se que o futuro esteja mesmo nos leitores digitais, pois suas telas não emitem luz, cansando menos a vista, além de permitir maior portabilidade.
No Brasil, a primeira livraria dedicada exclusivamente à venda de livros digitais foi a Gato Sabido, que também lançou seu próprio leitor digital, o Cooler. Do lado dos fabricantes de aparelhos, a Positivo foi a pioneira no desenvolvimento de um e-reader para o mercado brasileiro, o Alfa. Paralelamente, livrarias que já existiam na Internet, como Submarino, Saraiva e Cultura, também apostaram nessa tendência e iniciaram a venda de e-books.
Há pouco tempo, Gato Sabido e Submarino fecharam um acordo operacional e juntaram suas ofertas digitais.
As iniciativas tomadas até agora no Brasil têm caráter estratégico, objetivando marcar posição como preparativo para quando esse mercado efetivamente deslanchar. As vendas de livros digitais ainda são insignificantes. A Gato Sabido, por exemplo, registra algumas poucas dezenas de downloads pagos por dia.
São muitos os fatores que corroboram para que o volume de vendas de e-books no Brasil ainda seja baixo. O primeiro é a falta de hábito do brasileiro de ler livros em telas, o que pode mudar rapidamente entre os leitores mais jovens, uma geração composta de “nativos digitais”. Há quem reclame de falta de leitores como um todo no País, independentemente do suporte do livro. Na opinião de Alexandre Vermeulen, presidente da Atchik-Realtime, os e-books podem ser uma oportunidade para formação de público leitor, especialmente se os editores fizerem uso de soluções multimídia, criando widgets e comunidades em redes sociais para promover os lançamentos. “Não basta simplesmente passar um livro no scanner. Isso não forma leitores, apenas migra os atuais para a mídia digital”, critica. Outro entusiasta do novo suporte para a formação de leitores é Mark Coker, sócio-fundador da Smashwords, empresa que distribui livros digitais de autores independentes nos EUA: “A relação do leitor com o livro muda. O livro passa a ser customizável: o leitor pode trocar o tamanho da fonte e a própria fonte”.
O alto preço dos e-readers atrapalha. Os modelos disponíveis no Brasil são importados e custam acima de R$ 500. Para fins tributários, eles são considerados hoje aparelhos eletrônicos e pagam imposto de importação de 60%. Há, contudo, uma briga judicial para que os e-readers passem a ser isentos de impostos, tal como os livros, o que baratearia significativamente o produto.
É preciso mencionar um problema mundial, que é a falta de padronização dos arquivos de livros digitais. Como toda tecnologia nascente, o e-book carece de um padrão único e interoperável. O favorito das editoras é o ePub, criado pela Adobe e reconhecido pela maioria Há e-readers de fabricantes independentes. Outro forte candidato a desempenhar o papel de líder é o PDF, também da Adobe, com adição de DRM (Digital Rights Management), para restringir as cópias. Na contramão, duas das maiores vendedoras de e-books do mundo, a Amazon e a Apple optaram por padrões proprietários que só podem ser lidos nos dispositivos comercializados por elas mesmas, o Kindle e a dupla iPhone/iPad, respectivamente.
Vale lembrar que todos esses formatos de arquivo utilizam algum tipo de DRM. No ePub, o consumidor pode instalar o livro em até seis aparelhos diferentes, desde que todos sejam do mesmo dono. O assunto é polêmico, pois subverte algumas características básicas do livro físico, que é poder emprestá-lo para amigos. “Imagine se houvesse DRM no livro impresso! Você só poderia ler na cama e no sofá, mas não na praia. Já pensou ter que digitar uma senha para abrir o livro?”, critica Coker, da Smashwords.
Conteúdo
O principal fator que trava o crescimento do mercado de e-books no Brasil é, sem dúvida, a falta de conteúdo. São poucas as grandes editoras que se aventuraram a disponibilizar títulos em versão digital. E aquelas que tiveram coragem o fizeram timidamente até agora, como Companhia das Letras, Ediouro, Nova Fronteira e Globo. Para complicar, o preço praticado pelas grandes editoras nos e-books é apenas um pouco mais barato que aquele das versões físicas, quando poderia ser muito menor. Na opinião dos especialistas, isso acontece porque as editoras têm medo de que o e-book canibalize as vendas dos livros físicos. Para se ter uma ideia, o romance “Leite Derramado”, de Chico Buarque, editado pela Companhia das Letras, era vendido no site da Saraiva no começo de outubro por R$ 39 na versão física e R$ 29 na digital. Para especialistas, o preço ideal de um e-book seria por volta de R$ 15, ou menos.
O tamanho diminuto do catálogo de livros digitais brasileiros pode ser percebido com números da Gato Sabido: a livraria conta hoje com apenas 1,8 mil títulos em português, contra mais de 120 mil em inglês. “Eu imaginava que em 2010 fôssemos ter 30 mil livros nacionais, mas não contava com o despreparo e a desorganização das editoras brasileiras”, confessa o sócio-fundador da empresa, Carlos Eduardo Ernanny. Portanto, a falta de conteúdo não se deve apenas ao medo das editoras de perderem o controle sobre seu conteúdo ou de canibalizarem as vendas dos livros físicos. Há outros obstáculos, como a dificuldade em digitalizar o próprio acervo. Boa parte dos livros antigos de grandes editoras não tem nem sequer versão em fotolito. Nesses casos, é preciso digitalizar página por página com um scanner e depois passar sobre as imagens um software de OCR (Optical Character Recognition) para identificar o texto e, finalmente, gerar um PDF e, em seguida, um ePub. A Ediouro é uma das mais avançadas nesse processo de digitalização, graças ao fato de ter uma subsidiária dedicada a essa tarefa, a Singular Digital. De seu acervo de 10 mil títulos, a Ediouro já tem 3 mil digitalizados, a maioria em PDF e 250 em ePub. Nem todos, porém, estão à venda como e-books por enquanto. A digitalização dos livros tem um custo. Pelo processo de transposição do papel para o ePub, a Singular cobra R$ 2,50 por página. Se a editora cliente tiver pelo menos o arquivo original em PDF aberto, o preço de adaptação para ePub cai para R$ 0,60 por página. A Gato Sabido também oferece o serviço de conversão para as editoras, cobrando R$ 200 por livro, independentemente do tamanho. Algumas editoras têm preferido fazer a conversão com empresas indianas. É recomendado que se faça uma revisão do arquivo em ePub, pois é comum ocorrerem erros no processo de conversão. Com o intuito de acelerar a disponibilização de títulos digitais, a Gato Sabido lançará em breve um editor gratuito de ePubs. “Não queremos ganhar dinheiro com conversão. Fazemos isso para ajudar o mercado”, explica Ernanny.
Outra dificuldade enfrentada pelas editoras é a questão dos direitos autorais no mundo digital. Os contratos assinados com autores até poucos anos atrás não previam esse tipo de distribuição. Dessa forma, é preciso renegociar com cada autor, caso a caso, para poder vender a versão eletrônica de todo o acervo antigo. Nem sempre essa renegociação é simples. Na venda digital, os autores conseguem percentuais melhores, que variam de 25% a 85%, no caso de plataformas independentes, como a SmashWords. Há ainda situações em que a editora original é dispensada da venda digital pelo escritor ou por seu agente literário, que negociam o e-book diretamente com livrarias digitais. Cabe ressaltar que a edição digital recebe um ISBN (International Standard Book Number) diferente da impressa. O ISBN é o número de identificação internacional de uma obra escrita.
Smartphones
Embora o mercado de livros digitais ainda seja incipiente, há grande expectativa de que ele possa crescer através da distribuição para as telas dos celulares, amplificando o efeito que os tablets e leitores digitais já estão tendo no mercado de telecomunicações.
A Apple já se posicionou nesse segmento, com a criação do aplicativo iBookStore, que funciona como livraria e leitor digital para iPhones e iPads. O aplicativo similar mais conhecido na plataforma Android é o Aldiko, baixado gratuitamente e com vasta oferta de títulos em domínio público.
No Brasil, novamente o pioneirismo coube às livrarias. Em outubro, a Saraiva disponibilizou o Saraiva Digital Reader, um leitor digital para iPhone e iPad. A Gato Sabido prometia fazer o mesmo até o fim do mesmo mês de outubro. No seu caso, além de leitor, o aplicativo permitirá a compra de e-books com pagamento via cartão de crédito. A empresa espera disponibilizar versões para Blackberry, Symbian e Android até o final do ano.
Correndo por fora, está a novata MoBooks, empresa brasileira que nasce dedicada à venda de conteúdo editorial em plataformas móveis, fundada por executivos com experiência no mercado de serviços de valor adicionado (SVA) brasileiro. No seu caso, o aplicativo foi desenvolvido dentro de casa e a primeira versão é em Java. O software está neste momento sendo submetido às app stores que trabalham com Java no País, como a OVI, da Nokia, a loja da Vivo e aquelas criadas dentro da plataforma Plaza, da Qualcomm. Versões para smartphones chegarão em 2011. A loja da MoBooks nascerá com cerca de 200 títulos. O acervo inclui não apenas livros, mas também revistas e histórias em quadrinhos. Além do modelo de venda de e-books, a empresa pretende trabalhar com conteúdo patrocinado. A MoBooks também oferecerá sua plataforma para editoras e livrarias interessadas em distribuir e-books em celulares.
Outra iniciativa nessa área parte da Singular, do grupo Ediouro, que negocia com fabricantes de celulares a possibilidade de embarcar livros em modelos futuros, tal como já é feito hoje com música.
Há dúvidas sobre que tipo de livro será mais popular para leitura nas reduzidas telas dos celulares. “Não acredito que alguém lerá um livro de cabo a rabo em um smartphone. Mas se você está na sala de espera de um consultório médico, por que não ler um capítulo do romance que deixou em casa? Acho que servirá para intercalar com leitura do livro físico”, prevê Filipe Diniz, um dos sócios da MoBooks. Outra aposta é de que os smartphones sejam usados principalmente para o acesso a livros técnicos e de referência, como dicionários, que são pesados para carregar e precisam ser acessados rapidamente, para consultas pontuais, em qualquer lugar. Há também quem acredite no surgimento de novos formatos literários que se adaptem às telas dos celulares. “Deve ser criado um gênero literário específico para essa mídia. Talvez histórias mais curtas, ou pílulas”, especula Newton Neto, diretor da Singular Digital.
Na distribuição em celulares, o maior desafio será definir um modelo de negócios que agrade não apenas a editoras e livrarias, mas também às operadoras móveis. “Precisamos botar todos os lados para conversar. Algumas editoras querem 70% do preço de capa do e-book. E operadoras estão acostumadas a reter 50%. A conta não fecha”, expõe Diniz, da MoBooks.
Apesar dos avanços da tecnologia, ninguém aposta que o livro físico desaparecerá por completo. Ou pelo menos ainda estamos muito distantes disso acontecer. Ao que tudo indica, o livro continuará sendo produzido e consumido por muito tempo, embora cada vez em menor escala, transformando-se em item de colecionadores, como são hoje os LPs e os CDs. “O livro será ainda mais valorizado no futuro. Provavelmente você lerá primeiro o e-book e comprará depois a versão impressa daqueles que gostar mais”, prevê Neves.
Distribuidora: essencial ou dispensável?
Hoje, para uma editora ter seus livros nas prateleiras de milhares de livrarias espalhadas pelo Brasil afora é fundamental contratar o serviço de uma distribuidora. Trata-se de uma empresa dotada de uma frota de veículos, encarregada em transportar livros das editoras para os varejistas. Boa parte da receita dos livros físicos fica nas mãos das distribuidoras. Com o advento dos e-books, a função delas se extingue. Afinal, o produto físico deixa de existir e o transporte, que antes era feito pelas estradas esburacadas do país, passa a acontecer pelos cabos de fibra óptica da Internet.
Só que não é tão simples assim. Uma coisa é a editora negociar com meia dúzia de livrarias digitais. Outra, bem diferente, é quando o mercado crescer e for preciso lidar com dezenas, quiçá centenas de livrarias. Como garantir que o número de downloads vendidos informado por cada uma das livrarias é verdadeiro? Como garantir a segurança dos arquivos dos livros, com tantos parceiros envolvidos? E se em algum momento for necessário suspender a venda de um título ou realizar a atualização de seu arquivo: será preciso fazer isso uma a uma com todas as livrarias?
Para ajudar as editoras a resolver tais questões surge a figura da distribuidora digital. A primeira a nascer no Brasil é a Xeriph, fundada pela Gato Sabido, e que já teve 20% do seu capital vendido para a Superpedido, uma das maiores distribuidoras físicas do País. A proposta da Xeriph é ser uma plataforma onde editoras e livrarias se conectam para a venda de e-books. Cada editora manterá uma página própria no servidor da Xeriph, atualizando seu catálogo de livros digitais simultaneamente para todas as livrarias, definindo preços e acompanhando as vendas de todos os canais em tempo real. Os arquivos com os miolos dos livros ficam armazenados na Xeriph. A cada venda, a livraria busca o arquivo no servidor da distribuidora e entrega para o consumidor, o que permite que a Xeriph o controle todas as vendas. A empresa cobra das livrarias 3% sobre o preço de capa e das editoras, 2%, além da taxa de DRM (digital rights management) da Adobe.
A Gato Sabido não é a única a investir nesse caminho. Um grupo de grandes editoras, no qual estão incluídas Record, Rocco, Planeta, Sextante e Objetiva, fundaram a DLD (Distribuidora de Livros Digitais), com a proposta de controlarem elas mesmas a distribuição digital de seus livros. A DLD ainda não entrou em operação.
O surgimento de distribuidoras digitais divide o mercado. Algumas editoras veem com bons olhos. Outras, nem tanto. “Não precisamos de intermediários para alcançar as livrarias”, afirma Newton Neto, diretor da Singular, braço digital da Ediouro.
PUBLICADO EM 20.12.10
Para vislumbrar a transformação que se avizinha do mercado editorial tradicional, é necessário compreender como ele opera hoje. Compete às editoras escolher os títulos que são lançados e firmar contratos com os autores, para os quais repassam em média 10% do faturamento com o livro, a título de direitos autorais. É comum escritores de renome receberem um adiantamento desse valor antes mesmo do lançamento do livro. As editoras se encarregam do trabalho de produção do livro, que inclui revisão, diagramação, desenho de capa e impressão, que geralmente é terceirizada, pois a maioria não tem gráfica própria. A produção e a impressão do livro correspondem a algo entre 6% e 8% do preço do exemplar. Para a distribuição às livrarias é comum as editoras contratarem distribuidoras especializadas, que abocanham entre 15% e 25% da receita. Os livros são entregues em regime de consignação, ou seja, as editoras só recebem por aqueles que tenham sido efetivamente vendidos. Em média, as livrarias ficam com 45% do preço de capa. Esse percentual pode ser maior quando se trata de grandes redes varejistas. Para complicar, existe no mercado editorial a prática de se pagar “jabá” para as livrarias em troca de maior destaque para os livros nas vitrines. Ou seja, no fim das contas, as editoras têm uma margem de lucro próxima a 15% sobre o preço de capa. Vale lembrar que livro é isento de impostos no Brasil.
À primeira vista, a digitalização dos livros é benéfica para as editoras, pois elimina os custos de impressão e de distribuição. Entretanto, todas tratam o assunto com extrema cautela. Alonso Alvarez, diretor da Libre, associação que reúne cerca de cem editoras brasileiras de médio e pequeno porte, explica o motivo: “As editoras têm medo de perder o controle sobre seu conteúdo, tal como aconteceu na música”. O consultor e autor Ricardo Neves utiliza uma comparação histórica para descrever a situação: “As editoras veem os e-books da mesma forma que monges copistas viam a prensa de Gutemberg”.
Diante da insegurança das editoras, coube às livrarias na Internet dar o primeiro passo para fazer o negócio de e-books acontecer. Foi assim nos EUA, onde a Amazon, para estimular a leitura em telas, desenvolveu seu próprio e-reader, o Kindle. O mesmo caminho foi seguido pela gigante Barnes & Noble, com seu e-reader Nook. Fabricantes tradicionais de eletro-eletrônicos, como a Sony e a coreana iRiver, também criaram suas linhas de e-readers. Embora a maioria das vendas de livros digitais ainda aconteça para leitura em desktops, aposta-se que o futuro esteja mesmo nos leitores digitais, pois suas telas não emitem luz, cansando menos a vista, além de permitir maior portabilidade.
No Brasil, a primeira livraria dedicada exclusivamente à venda de livros digitais foi a Gato Sabido, que também lançou seu próprio leitor digital, o Cooler. Do lado dos fabricantes de aparelhos, a Positivo foi a pioneira no desenvolvimento de um e-reader para o mercado brasileiro, o Alfa. Paralelamente, livrarias que já existiam na Internet, como Submarino, Saraiva e Cultura, também apostaram nessa tendência e iniciaram a venda de e-books.
Há pouco tempo, Gato Sabido e Submarino fecharam um acordo operacional e juntaram suas ofertas digitais.
As iniciativas tomadas até agora no Brasil têm caráter estratégico, objetivando marcar posição como preparativo para quando esse mercado efetivamente deslanchar. As vendas de livros digitais ainda são insignificantes. A Gato Sabido, por exemplo, registra algumas poucas dezenas de downloads pagos por dia.
São muitos os fatores que corroboram para que o volume de vendas de e-books no Brasil ainda seja baixo. O primeiro é a falta de hábito do brasileiro de ler livros em telas, o que pode mudar rapidamente entre os leitores mais jovens, uma geração composta de “nativos digitais”. Há quem reclame de falta de leitores como um todo no País, independentemente do suporte do livro. Na opinião de Alexandre Vermeulen, presidente da Atchik-Realtime, os e-books podem ser uma oportunidade para formação de público leitor, especialmente se os editores fizerem uso de soluções multimídia, criando widgets e comunidades em redes sociais para promover os lançamentos. “Não basta simplesmente passar um livro no scanner. Isso não forma leitores, apenas migra os atuais para a mídia digital”, critica. Outro entusiasta do novo suporte para a formação de leitores é Mark Coker, sócio-fundador da Smashwords, empresa que distribui livros digitais de autores independentes nos EUA: “A relação do leitor com o livro muda. O livro passa a ser customizável: o leitor pode trocar o tamanho da fonte e a própria fonte”.
O alto preço dos e-readers atrapalha. Os modelos disponíveis no Brasil são importados e custam acima de R$ 500. Para fins tributários, eles são considerados hoje aparelhos eletrônicos e pagam imposto de importação de 60%. Há, contudo, uma briga judicial para que os e-readers passem a ser isentos de impostos, tal como os livros, o que baratearia significativamente o produto.
É preciso mencionar um problema mundial, que é a falta de padronização dos arquivos de livros digitais. Como toda tecnologia nascente, o e-book carece de um padrão único e interoperável. O favorito das editoras é o ePub, criado pela Adobe e reconhecido pela maioria Há e-readers de fabricantes independentes. Outro forte candidato a desempenhar o papel de líder é o PDF, também da Adobe, com adição de DRM (Digital Rights Management), para restringir as cópias. Na contramão, duas das maiores vendedoras de e-books do mundo, a Amazon e a Apple optaram por padrões proprietários que só podem ser lidos nos dispositivos comercializados por elas mesmas, o Kindle e a dupla iPhone/iPad, respectivamente.
Vale lembrar que todos esses formatos de arquivo utilizam algum tipo de DRM. No ePub, o consumidor pode instalar o livro em até seis aparelhos diferentes, desde que todos sejam do mesmo dono. O assunto é polêmico, pois subverte algumas características básicas do livro físico, que é poder emprestá-lo para amigos. “Imagine se houvesse DRM no livro impresso! Você só poderia ler na cama e no sofá, mas não na praia. Já pensou ter que digitar uma senha para abrir o livro?”, critica Coker, da Smashwords.
Conteúdo
O principal fator que trava o crescimento do mercado de e-books no Brasil é, sem dúvida, a falta de conteúdo. São poucas as grandes editoras que se aventuraram a disponibilizar títulos em versão digital. E aquelas que tiveram coragem o fizeram timidamente até agora, como Companhia das Letras, Ediouro, Nova Fronteira e Globo. Para complicar, o preço praticado pelas grandes editoras nos e-books é apenas um pouco mais barato que aquele das versões físicas, quando poderia ser muito menor. Na opinião dos especialistas, isso acontece porque as editoras têm medo de que o e-book canibalize as vendas dos livros físicos. Para se ter uma ideia, o romance “Leite Derramado”, de Chico Buarque, editado pela Companhia das Letras, era vendido no site da Saraiva no começo de outubro por R$ 39 na versão física e R$ 29 na digital. Para especialistas, o preço ideal de um e-book seria por volta de R$ 15, ou menos.
O tamanho diminuto do catálogo de livros digitais brasileiros pode ser percebido com números da Gato Sabido: a livraria conta hoje com apenas 1,8 mil títulos em português, contra mais de 120 mil em inglês. “Eu imaginava que em 2010 fôssemos ter 30 mil livros nacionais, mas não contava com o despreparo e a desorganização das editoras brasileiras”, confessa o sócio-fundador da empresa, Carlos Eduardo Ernanny. Portanto, a falta de conteúdo não se deve apenas ao medo das editoras de perderem o controle sobre seu conteúdo ou de canibalizarem as vendas dos livros físicos. Há outros obstáculos, como a dificuldade em digitalizar o próprio acervo. Boa parte dos livros antigos de grandes editoras não tem nem sequer versão em fotolito. Nesses casos, é preciso digitalizar página por página com um scanner e depois passar sobre as imagens um software de OCR (Optical Character Recognition) para identificar o texto e, finalmente, gerar um PDF e, em seguida, um ePub. A Ediouro é uma das mais avançadas nesse processo de digitalização, graças ao fato de ter uma subsidiária dedicada a essa tarefa, a Singular Digital. De seu acervo de 10 mil títulos, a Ediouro já tem 3 mil digitalizados, a maioria em PDF e 250 em ePub. Nem todos, porém, estão à venda como e-books por enquanto. A digitalização dos livros tem um custo. Pelo processo de transposição do papel para o ePub, a Singular cobra R$ 2,50 por página. Se a editora cliente tiver pelo menos o arquivo original em PDF aberto, o preço de adaptação para ePub cai para R$ 0,60 por página. A Gato Sabido também oferece o serviço de conversão para as editoras, cobrando R$ 200 por livro, independentemente do tamanho. Algumas editoras têm preferido fazer a conversão com empresas indianas. É recomendado que se faça uma revisão do arquivo em ePub, pois é comum ocorrerem erros no processo de conversão. Com o intuito de acelerar a disponibilização de títulos digitais, a Gato Sabido lançará em breve um editor gratuito de ePubs. “Não queremos ganhar dinheiro com conversão. Fazemos isso para ajudar o mercado”, explica Ernanny.
Outra dificuldade enfrentada pelas editoras é a questão dos direitos autorais no mundo digital. Os contratos assinados com autores até poucos anos atrás não previam esse tipo de distribuição. Dessa forma, é preciso renegociar com cada autor, caso a caso, para poder vender a versão eletrônica de todo o acervo antigo. Nem sempre essa renegociação é simples. Na venda digital, os autores conseguem percentuais melhores, que variam de 25% a 85%, no caso de plataformas independentes, como a SmashWords. Há ainda situações em que a editora original é dispensada da venda digital pelo escritor ou por seu agente literário, que negociam o e-book diretamente com livrarias digitais. Cabe ressaltar que a edição digital recebe um ISBN (International Standard Book Number) diferente da impressa. O ISBN é o número de identificação internacional de uma obra escrita.
Smartphones
Embora o mercado de livros digitais ainda seja incipiente, há grande expectativa de que ele possa crescer através da distribuição para as telas dos celulares, amplificando o efeito que os tablets e leitores digitais já estão tendo no mercado de telecomunicações.
A Apple já se posicionou nesse segmento, com a criação do aplicativo iBookStore, que funciona como livraria e leitor digital para iPhones e iPads. O aplicativo similar mais conhecido na plataforma Android é o Aldiko, baixado gratuitamente e com vasta oferta de títulos em domínio público.
No Brasil, novamente o pioneirismo coube às livrarias. Em outubro, a Saraiva disponibilizou o Saraiva Digital Reader, um leitor digital para iPhone e iPad. A Gato Sabido prometia fazer o mesmo até o fim do mesmo mês de outubro. No seu caso, além de leitor, o aplicativo permitirá a compra de e-books com pagamento via cartão de crédito. A empresa espera disponibilizar versões para Blackberry, Symbian e Android até o final do ano.
Correndo por fora, está a novata MoBooks, empresa brasileira que nasce dedicada à venda de conteúdo editorial em plataformas móveis, fundada por executivos com experiência no mercado de serviços de valor adicionado (SVA) brasileiro. No seu caso, o aplicativo foi desenvolvido dentro de casa e a primeira versão é em Java. O software está neste momento sendo submetido às app stores que trabalham com Java no País, como a OVI, da Nokia, a loja da Vivo e aquelas criadas dentro da plataforma Plaza, da Qualcomm. Versões para smartphones chegarão em 2011. A loja da MoBooks nascerá com cerca de 200 títulos. O acervo inclui não apenas livros, mas também revistas e histórias em quadrinhos. Além do modelo de venda de e-books, a empresa pretende trabalhar com conteúdo patrocinado. A MoBooks também oferecerá sua plataforma para editoras e livrarias interessadas em distribuir e-books em celulares.
Outra iniciativa nessa área parte da Singular, do grupo Ediouro, que negocia com fabricantes de celulares a possibilidade de embarcar livros em modelos futuros, tal como já é feito hoje com música.
Há dúvidas sobre que tipo de livro será mais popular para leitura nas reduzidas telas dos celulares. “Não acredito que alguém lerá um livro de cabo a rabo em um smartphone. Mas se você está na sala de espera de um consultório médico, por que não ler um capítulo do romance que deixou em casa? Acho que servirá para intercalar com leitura do livro físico”, prevê Filipe Diniz, um dos sócios da MoBooks. Outra aposta é de que os smartphones sejam usados principalmente para o acesso a livros técnicos e de referência, como dicionários, que são pesados para carregar e precisam ser acessados rapidamente, para consultas pontuais, em qualquer lugar. Há também quem acredite no surgimento de novos formatos literários que se adaptem às telas dos celulares. “Deve ser criado um gênero literário específico para essa mídia. Talvez histórias mais curtas, ou pílulas”, especula Newton Neto, diretor da Singular Digital.
Na distribuição em celulares, o maior desafio será definir um modelo de negócios que agrade não apenas a editoras e livrarias, mas também às operadoras móveis. “Precisamos botar todos os lados para conversar. Algumas editoras querem 70% do preço de capa do e-book. E operadoras estão acostumadas a reter 50%. A conta não fecha”, expõe Diniz, da MoBooks.
Apesar dos avanços da tecnologia, ninguém aposta que o livro físico desaparecerá por completo. Ou pelo menos ainda estamos muito distantes disso acontecer. Ao que tudo indica, o livro continuará sendo produzido e consumido por muito tempo, embora cada vez em menor escala, transformando-se em item de colecionadores, como são hoje os LPs e os CDs. “O livro será ainda mais valorizado no futuro. Provavelmente você lerá primeiro o e-book e comprará depois a versão impressa daqueles que gostar mais”, prevê Neves.
Distribuidora: essencial ou dispensável?
Hoje, para uma editora ter seus livros nas prateleiras de milhares de livrarias espalhadas pelo Brasil afora é fundamental contratar o serviço de uma distribuidora. Trata-se de uma empresa dotada de uma frota de veículos, encarregada em transportar livros das editoras para os varejistas. Boa parte da receita dos livros físicos fica nas mãos das distribuidoras. Com o advento dos e-books, a função delas se extingue. Afinal, o produto físico deixa de existir e o transporte, que antes era feito pelas estradas esburacadas do país, passa a acontecer pelos cabos de fibra óptica da Internet.
Só que não é tão simples assim. Uma coisa é a editora negociar com meia dúzia de livrarias digitais. Outra, bem diferente, é quando o mercado crescer e for preciso lidar com dezenas, quiçá centenas de livrarias. Como garantir que o número de downloads vendidos informado por cada uma das livrarias é verdadeiro? Como garantir a segurança dos arquivos dos livros, com tantos parceiros envolvidos? E se em algum momento for necessário suspender a venda de um título ou realizar a atualização de seu arquivo: será preciso fazer isso uma a uma com todas as livrarias?
Para ajudar as editoras a resolver tais questões surge a figura da distribuidora digital. A primeira a nascer no Brasil é a Xeriph, fundada pela Gato Sabido, e que já teve 20% do seu capital vendido para a Superpedido, uma das maiores distribuidoras físicas do País. A proposta da Xeriph é ser uma plataforma onde editoras e livrarias se conectam para a venda de e-books. Cada editora manterá uma página própria no servidor da Xeriph, atualizando seu catálogo de livros digitais simultaneamente para todas as livrarias, definindo preços e acompanhando as vendas de todos os canais em tempo real. Os arquivos com os miolos dos livros ficam armazenados na Xeriph. A cada venda, a livraria busca o arquivo no servidor da distribuidora e entrega para o consumidor, o que permite que a Xeriph o controle todas as vendas. A empresa cobra das livrarias 3% sobre o preço de capa e das editoras, 2%, além da taxa de DRM (digital rights management) da Adobe.
A Gato Sabido não é a única a investir nesse caminho. Um grupo de grandes editoras, no qual estão incluídas Record, Rocco, Planeta, Sextante e Objetiva, fundaram a DLD (Distribuidora de Livros Digitais), com a proposta de controlarem elas mesmas a distribuição digital de seus livros. A DLD ainda não entrou em operação.
O surgimento de distribuidoras digitais divide o mercado. Algumas editoras veem com bons olhos. Outras, nem tanto. “Não precisamos de intermediários para alcançar as livrarias”, afirma Newton Neto, diretor da Singular, braço digital da Ediouro.
PUBLICADO EM 20.12.10
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