O            objeto de discussão deste trabalho é o corpo do super-herói            e o corpo do vilão das historias em quadrinhos. No mundo dos            quadrinhos encontramos os mais variados gêneros de histórias:            humos, erotismo, infantil, entre outros. No âmbito deste trabalho            as histórias que nos interessam são as de super-heróis            ou, como são conhecidos nos Estados Unidos, os “comics            books”, o motivo para tal escolha é simples, neste            gênero de história encontramos abundante material para            refletirmos sobre o corpo e alguns outros aspectos a ele relacionados.            Neste sentido, o que objetivamos aqui é analisar os aspectos            físicos dos corpos dos super-heróis e dos vilões            nas historias em quadrinhos, tentando entender que tipo de estética            corporal eles afirmam, concomitante a isso fazer uma comparação            entre os corpos presentes nas histórias em quadrinhos com as            exigências sócio-culturais referentes ao corpo humano propriamente            dito.

            As histórias em quadrinhos já foi objeto de estudo nas            mais variadas áreas de conhecimento. Um desses estudos foi encabeçado            pelo psiquiatra alemão Fredric Wertham, o qual, no final da Segunda            Guerra Mundial e inicio da Guerra Fria, aproveitando-se do clima pós-guerra            que se instalou nos Estados Unidos, oportunamente fez talvez a mais            dura crítica que os quadrinhos já sofreram em seu livro            “Seduction of the inocents”, no qual alegava que            as historias em quadrinhos levavam os jovens americanos ao homossexualismo            (usando como elemento de argumentação a relação            entre a dupla Batman e Robin) e diversas outras “anomalias no            comportamento”. As denuncias de Wertham mobilizaram vários            segmentos da sociedade americana como, por exemplo, associações            de professores, mães e até mesmo grupos religiosos, todos            unidos em prol de uma única causa – abolir as histórias            em quadrinhos. As críticas aos “comics books” percorreram            o globo, atingindo com maior ou menor impacto todos os paises nos quais            os quadrinhos eram editados, diversos códigos foram criados para            “depurar” o conteúdo dos quadrinhos inclusive em            nosso país, no qual foi criado um “código de ética            dos quadrinhos” elaborado por um grupo de editores das maiores            editoras de quadrinhos no Brasil (VERGUEIRO & RAMA, 2004).

            O desenvolvimento das ciências da comunicação e            dos estudos culturais nas ultimas décadas do século XX            fez com que as histórias em quadrinhos passassem a ter um novo            status de aceitação por parte de educadores e intelectuais.            Assim, sua atual condição é a de importante instrumento            educacional e altamente difundido em publicações especializadas            em educação, até mesmo nos Parâmetros            Curriculares Nacionais (PCNs) encontramos recomendações            para a utilização das historias em quadrinhos em sala            de aula. Ainda no campo da academia, podemos destacar várias            pesquisas abordando os personagens das historias em quadrinhos e suas            aventuras: história, arquitetura, religião, enfermagem,            entre outras, apresentam um razoável número de publicações            de teses de mestrado e doutorado utilizando as historias em quadrinhos            como pano de fundo para debater os mais variados assuntos. Muitos autores            destacam que nessas histórias há a presença de            valores implícitos que vão muito além do valor            de entretenimento. Diversas publicações que se tornaram            clássicas no universo acadêmico expressão esse significado:            “Para ler o Pato Donald” de Dorfman e Matellard            ,”Super-homem e seus amigos do peito” de Dorfman            e Manuel Jofre, “Apocalípticos e Integrados”            de Umberto Eco, são exemplos de textos que vieram            enriquecer o debate e ajudaram a despertar o interesse para análises            mais atenta deste tipo de material. Conforme expressam ARRUDA e MARTINS            ao falarem de Dorffman & Matellard:
Esses            autores denunciam a ideologia subjacente aos quadrinhos, na medida em            que confirmam os valores da classe dominante, escamoteiam os conflitos,            transmitem uma visão deformada do trabalho e levam à passividade            política. (1993: 46)
Se            encarados de uma maneira mais crítica percebe-se que em suas            páginas estão explicita ou implicitamente contidos todos            os preconceitos, reações e imagens em relação            ao corpo que a indústria cultural produz e que circulam na sociedade.            O corpo retratado nas historias em quadrinhos, tanto o corpo feminino            quanto o masculino, é aquele corpo idealizado pela indústria            do exercício, a indústria dos remédios e cirurgias            plásticas e pelos meios de comunicação: o “corpo            perfeito”, “belo”, musculoso, o corpo jovem, e numa            relação de alteridade, o corpo obeso, o corpo magro e            o corpo idoso. As implicações sociais que essas imagens            trazem consigo, traçando um paralelo entre o mundo idealizado            nas páginas dos quadrinhos e o mundo real, denunciam as desigualdades            e preconceitos presentes em ambas as esferas dessa alteridade de maneira            crua e direta.

            Partindo já para uma análise de alguns elementos presentes            nos quadrinhos, um primeiro ponto que gostaríamos de ressaltar            diz respeito mesmo à aparência física dos personagens.            Vejamos o caso dos protagonistas, estes são graficamente distintos            dos demais, tanto por seus atributos físicos quanto por suas            características sociais e intelectuais. Já os personagens            coadjuvantes sempre expressam características físicas            e morais menos impressionantes, pois, somente assim se pode destacar            o personagem principal. As historias do Superman são            exemplares para essa questão, o qual, em sua identidade de Clark            Kent, é um respeitado jornalista enquanto seu fiel parceiro            Jimmy Olsen, após vários fracassos profissionais,            continua sendo o fotógrafo que é esculachado pelo seu            chefe Perry White, percebe-se que enquanto Clark Kent            ascendeu socialmente através dos anos (o qual ganhou um prêmio            Pullitzer nos quadrinhos), o mesmo não ocorre com seu parceiro            de longa data.
Foggy          Nelson
            Os parceiros dos heróis ou de seus alter ego sempre são            motivos de chacota ou riso. Estes geralmente possuem as características            que são vinculadas àquelas pessoas que fazem parte das            minorias raciais ou com atributos físicos considerados desagradáveis,            o exemplo notório é o de Foggy Nelson,            das historias do personagem Demolidor, o qual é            obeso e desajeitado, duas características que geralmente vêm            associadas - é interessante perceber que esse tipo de associação            também é feito na vida real . Nas historias do Batman,            o famoso vigilante da sombria Gotham City, temos o            desfigurado e deformado Harold que auxilia o paladino mascarado construindo            aparelhos eletrônicos utilizados pelo herói na sua interminável            cruzada contra o crime. Como estes, temos muitos outros exemplos nos            quais os heróis e seus respectivos parceiros são claramente            diferenciados – de um lado “sujeitos-comuns” com corpos            fora do “padrão” que não chamam muito a atenção            ou chamem a atenção de forma pejorativa, de outro, “sujeitos-heróis”            com corpos fortes e perfeitos que chamem a atenção por            suas qualidades admiráveis.

            É clara nos quadrinhos a relação entre valores            morais e imagem do corpo: o corpo forte e belo, por exemplo, é            pré-requisito ou sempre estar associado a um caráter irrepreensível,            por sua vez, o corpo fraco e feio vem associado a um caráter            duvidoso. Confirmando esse argumento temos o resultado de uma pesquisa            realizada nos Estados Unidos com crianças junto as quais foi            contatada essa associação:
As            silhuetas obesas atraíram uniformemente apreciações            bem negativas (“trapaceiro”, ”preguiçoso”,            ”sujo”, ”mau”, ”feio”, ”besta”,            etc.). Já as silhuetas esguias eram uniformemente julgadas de            forma positiva. (FISCHLER et al,1989, p.70)
O            corpo feminino também abunda nas paginas das historias em quadrinhos,            todos esbeltos, magros, com quadris estreitos e com seios fartos, o            típico padrão de beleza americana inspirado em modelos            famosas. Corpo que são construídos geralmente recorrendo            às cirurgias plásticas e ao silicone. Neste sentido não            existe heroínas “feias”, gordas. Apesar de personagens            femininas não possuírem um grande numero de títulos,            existem alguns, como a Mulher Maravilha e Birds            of Prey entre os mais conhecidos, e mesmo em outros títulos            a figura do corpo feminino é retratado exaustivamente em termos            sensuais: seios enormes e amostra, pernas longas e expostas, nádegas            definidas e realçadas – corpos feitos nitidamente para            admiração e excitação, corpos sem “defeitos”.
Canário Negro            Como falar de heróis sem falar de vilões? Como fazer com            que o corpo forte do herói seja ainda mais evidente sem os feios,            magros e velhos vilões? O corpo do vilão é sempre            um corpo construído para não ser admirado, somente para            citar alguns exemplos e entre os mais conhecidos temos o Rei            do Crime, arquiinimigo do ágil e musculoso Demolidor,            figura obesa e vil; o Dr.Octopus, um dos primeiros            inimigos do grande Homem Aranha, é gordo, baixo            e feio; e das páginas dos não menos conhecidos X-Men            podemos citar o Blob e Mojo, duas            figuras extremamente obesas; novamente usando as páginas de Batman,            temos o insano Coringa, o quase esquelético            palhaço do crime; e ainda podemos citar o Abutre,            idoso e magro inimigo do Homem Aranha.
Dr. Octopus            Enquanto os heróis são agraciados com corpos de “deuses”            e com caráter moral incorruptível e justo, os vilões,            personagens secundários e até mesmo os alter ego dos heróis,            são o oposto, no sentido em que são feios, gordos, magros            disformes e sem caráter. O que é preocupante é            que tais atribuições são transpostas para o nosso            dia-a-dia. A figura do herói denota tudo o que, em tese, o discurso            do mercado propõe que o homem moderno venha seja - belo, bem            sucedido, forte - enquanto aquelas características que são            percebidas como opostas – feio, sem sucesso, fraco – são            desprezadas na figura do vilão.
Rei do Crime            Quem acredita que somente a obesidade é atacada nas histórias            em quadrinhos engana-se, além de figuras obesas e monstruosas            a galeria de vilões se compõe ainda de vários “vovôs”,            como Kaisen Gamorra, o Consertador            e Dr. Silvana e de “nanicos”, como o gênio            tecnológico Chip, do Quinteto Mortal e Mxplt,            o duende da Quinta Dimensão.
Consertador            Curiosamente quando se trata do herói a velhice é constantemente            negada e não abraçada e vivida, como no caso dos seus            rivais malignos. Este fato pode ser comprovado com diversos exemplos,            um dos mais notáveis talvez seja o fato de que eles nunca envelhecem,            o tempo nunca atingem os nossos heróis. Um exemplo clássico            de como a velhice é encarada nos quadrinhos pode ser percebido            nas aventuras dos heróis na revista da Sociedade da Justiça,            a qual narra as aventuras de heróis “cinqüentões”.            Apesar da idade avançada eles são apresentados com aparência            jovial, corpos enormes e musculosos. Mas como nas histórias em            quadrinhos para tudo há uma explicação, são            criadas as mais incríveis situações para que os            heróis não envelheçam: possuir sete vidas, conseqüentemente            não envelhecer, no caso do Pantera; ficar aprisionado em um limbo            no qual o tempo não passa, como no caso do Homem Hora;            estar inundado de um energias misteriosas que não permitem que            o Lanterna Verde envelheça. Existem outros exemplos,            dentro das mais diversas situações, no qual um corpo “velho”            é rejuvenescido - quase todos os heróis já morreram            uma vez e ressuscitaram, e sempre que isso acontece ressurgem jovens            e fortes novamente, foi o que aconteceu, por exemplo, com o Arqueiro            Verde e o Hall Jordan, o segundo Lanterna            Verde, que voltaram do mundo dos mortos, coincidentemente quando            as historias começavam a mostrar sinais de envelhecimento nesses            personagens.

            Este tema nos faz lembrar uma preocupação tão presente            e atualmente tão constante em nossa sociedade, qual seja, a “saúde            perfeita”, vinculada ao desejo de eternizar a juventude. Desejo            que fica claro nas tentativas quase que desesperadas da ciência            em achar formulas para retardar ou até mesmo parar o envelhecimento            e evitar a morte e nos inúmeros produtos existente para esconder            as rugas e marcas de expressão – iniciativas que vão            desde tintas para pintar os cabelos brancos até pesquisas que            visão alterar o código genético, intervenções            no sistema endócrino, chegando até à criogenia            (SILVA, 2001).

            Diante do que expomos acima não podemos deixar de ressaltar que            tais histórias não podem ser encaradas como “inofensivas”,            elas podem exercer, e em alguns casos exercem, o papel de mantenedoras            de determinadas imagens. Este meio de comunicação de massa,            que vem crescendo dia-a-dia no mundo inteiro, com tiragens cada vez            maiores, atingindo um número cada vez maior de consumidores,            necessita ser encarado com certas reservas, sobretudo nos ambientes            escolares. Acreditamos que se faz necessário, no caso de professores,            um contato mais constante com este tipo de literatura, preocupando-se            em conhecer o que representa, o que fomenta e a quem ou ao que serve            - um exemplo deste fato é a constatação de que            todos aqueles preconceitos referentes ao corpo existente na sociedade            estão presentes e são reforçados, explicita ou            implicitamente, nas paginas dos “comics”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA,            Maria Lucia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:            Introdução à Filosofia. 2ª edição.            São Paulo: Moderna, 1993.
            BARBOSA, Claudio L. de Alvarenga. Educação            Física Escolar: da alienação a libertação.            São Paulo: Vozes, 1997.
            COURTINE, Jean-Jacques. Os Stakhanovistas do narcisismo:            body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana            do corpo. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi.            (org). Políticas do Corpo. São Paulo: Estação            Liberdade, 1995.
            FISCHLER, Claude. Obeso Benigno, Obeso Maligno.            In: Sant’Anna, Denise Bernuzzi. Políticas            do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.            
            RAMA, Ângela & VERGUEIRO, Waldomiro (orgs).            Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São            Paulo: Contexto, 2004.
            SANT,ANNA, Denise Bernuzzi (Org.). Políticas            do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
            SIMÕES, Antonio Carlos (org). Mulher e esporte.            São Paulo: Manole, 2003.
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