“- É terrível ver que as pessoas se interessam mais por qualquer novela de televisão do que pelo problema do Vietnã. - Bem...Pode ser terrível mas também é lógico. - Por que? - Porque na verdade ninguém se interessa por uma luta entre maus e bons, quando não se sabe o nome do mocinho.”
A conversa, como se percebe pelo elemento geográfico mencionado, não mais pertence a este dia que vos acorda pelo despertador, mas não deixa de soar como um estalo de que o tempo costuma fazer sentido mesmo depois de dobrar a esquina. Os interlocutores do diálogo acima respondem pelo nome de Mafalda e Filipe, duas crianças que ficaram conhecidas nos anos 1960 e 1970 quando o cartunista argentino Quino resolveu expurgar seu rancor pela ditadura (argentina e latino-americana de uma maneira geral) com personagens acima de qualquer suspeita. Afinal de contas, quem pode culpar crianças por seus quase escandalosos arroubos de sinceridade? Não, não se podia culpar as crianças, mas certamente havia um culpado em cena e, como diria Filipe a Mafalda, numa luta entre maus e bons, é costume saber o nome do mocinho para que se possa distinguir o vilão.
As tirinhas de Mafalda se tornaram um símbolo de uma geração que falava em vilões (televisão, capitalismo) porque acreditava em mocinhos (diálogo, comunismo). E as crianças eram porta-vozes dos argumentos que não apenas cutucavam os adultos, como divertiam as próprias crianças. Mais ou menos como os bons filmes de animação fazem hoje. Publicadas em jornais que, por muito tempo, serviram como único meio de acesso à informação, essas tiras tinham como base uma certa angústia existencialista que se reflete em vários artistas do pós 2ª Guerra e ganha nova dimensão com a ameaça nuclear que se instala no mundo bipolar de capitalistas e comunistas. Antes e depois de Mafalda, outras crianças objetivaram a subjetividade em tirinhas de jornais: a turma do Charlie Brown e Calvin, apenas para citar exemplos mais populares.
Independente do contexto – paranoia do comunismo, paranoia do capitalismo, paranoia da vidinha comum – é fato que as tirinhas de jornais sempre carregaram uma ligação histórica com a crônica social de seus respectivos tempos e por diversas vezes isso se desenhou em crianças a quem nos apegamos facilmente. Hoje, as tirinhas esticaram suas cabeças para fora dos jornais e, mais distinto ainda, deixaram de ser aquele elemento que ligava diferentes gerações em um só objeto de leitura. Os jornais, os quadrinhos e as crianças não são mais os mesmos. O mundo lá fora não é mais o mesmo. Quanto aos mocinhos e vilões, esses simplesmente não são mais. Pode ser “terrível, mas lógico”, como diria Felipe, o fato de que a luta entre bons e maus virou uma luta de personagens sem nomes ou ismos vistos a olho nu. Porém, ao contrário do que prenunciava Felipe, há sim quem se interesse bastante por essa luta.
Existe um novo cenário para as tirinhas em quadrinhos que não é melhor ou pior que aquele da época das tirinhas de Charlie Brown, Mafalda ou Calvin. Mas assim como todas os quadrinhos dos personagens acima citados, as tirinhas que são publicadas hoje, uma parte pequena em jornais e a maior fatia na internet, espelham diversos elementos de quem somos hoje e para que direções olhamos. É certo que toda a ideia de rever o nome de Mafalda, justamente em um ano eleitoral, começou com um perfume nostálgico cheirando a mofo de conceitos políticos que costumavam nos conduzir por estradas onde só existiam dois sentidos: esquerda e direita. Ir em frente ou pegar, quem sabe, uma diagonal, era impensável. Poderíamos argumentar então que diversas linguagens artísticas - cinema, música, romances - poderiam igualmente nos apontar uma distinção de contexto histórico, por que então criar uma problemática com tirinhas de quadrinhos?
Porque num tempo em que frases de efeito são laboriosamente criadas para caber em 140 caracteres, fundir vários elementos de uma sociedade tão disforme em tirinhas de quatro, três, dois ou apenas um quadro é tentar entender como o senso crítico se manifesta em sua forma mais sucinta e, claro, mais bem-humorada. Nos editores de quadrinhos e jornalistas que cobrem a área fomos buscar um contexto de ontem e de hoje. Em três cartunistas vastamente – na medida da vastidão segmentada da internet - conhecidos por suas tirinhas procuramos motivações.
O que faremos então é relativizar alguns valores das tirinhas daquele momento específico da Mafalda e das tirinhas tais como o público brasileiro as consome hoje – ou não mais consome, enfim. A começar por contextos históricos.
“Durante boa parte dos anos 1970 e 1980 havia uma angústia imensa com relação ao futuro, um pensamento de ‘viva intensamente o hoje porque o amanhã é incerto’”, lembra o jornalista e escritor Gonçalo Junior (Guerra dos gibis). Gonçalo aponta que várias tirinhas terminaram refletindo essa angústia e que, em razão dela, “as pessoas se apegaram muito a ideias socialistas e comunistas e com certa ingenuidade se buscava um regime que fizesse oposição à ditadura”. O também jornalista Sidney Gusman, editor de HQ que trabalha com Maurício de Sousa, corrobora com a ideia de que “falta um inimigo público e os autores não têm muita saída em achar em como substituir isso”. André Conti, editor de quadrinhos da Cia das Letras, lembra que, a despeito de qualquer pano de fundo, o artista sempre irá refletir angústias que são sobretudo suas e, quem sabe, são do mundo também. “A rigor, a tira de quadrinhos, como qualquer outra criação, não tem obrigação de servir a nada, de ser crítica ou não. Tudo que tem uma função se esvazia”, pontua Conti. “No caso do Charlie Brown, por exemplo, a grande batalha ali era uma coisa do (Charles) Shultz com ele mesmo, com a falta de jeito dele com o resto do mundo”, frisa Conti.
No entanto, assim como nenhum homem é uma ilha, nenhum artista vê apenas a sua imagem no espelho. Conti contextualiza: “O próprio Mindoim dos anos 1970 fica muito cínico, para se transformar em algo mais comercial nos anos 1980. Até que nos anos 1990 os personagens ficam mais frios, melancólicos, reflexivos e aí Shultz termina de publicar.” Qual, portanto, o cenário dos anos 00 até o presente momento? Segundo as tirinhas de quadrinhos, que foram ficando cada vez mais adultas e centradas em um público com uma formação de ideias já melhor maturadas, do lado de fora da janela existe uma paisagem cujos conflitos são cada vez menos politicamente ideológicos e com uma constância de ideias de que só se materializa em sua inconstância. Na falta de uma ameaça nuclear, as paranoias se fragmentaram em pequenos grandes medos que se espalham via spam, numa esfera pública que já há algum tempo deixou de se ver refletida em grandes meios de imprensa, ainda que estes ainda pautem boa parte dos debates que ganham força em redes sociais.
Para onde e por onde mirar então? As tirinhas, espalhadas em links e livros, sendo algumas poucas publicadas em jornais e revistas, sugerem que as preocupações de cada um, ao contrário do que imaginávamos, têm sim um direcionamento coeso que aponta para uma reflexão sobre essa volatilidade de tudo e de todos. A dissolução dos valores, o politicamente correto, a velocidade com que um assunto deixa de ser interessante, biografias de celebridades de 16 anos, mudança constante dos suportes, tudo isso é hoje nosso grande motivo de piada. E sim, para o bem de nossa sanidade, continuamos a rir de nós mesmos.
As tirinhas deixam de ser fundamentalmente politizadas ou, até certa medida em que Mafalda refletiu isso, panfletárias. A não-ideologia é a nova ideologia. Ou, na opinião de Gonçalo Junior, “hoje você não tem mais ideologia para acreditar além da ideologia celestial. Se existe uma ideologia hoje ela é Deus, é uma Guerra Santa”. Sidney Gusman, por sua vez, acredita que “temos nos tornado vítima da globalização e acho que os autores ainda precisam achar o caminho pra se comentar isso, um caminho que atinja adultos e crianças”. De onde chegamos ao segundo ponto de valores em comum entre todas as tirinhas que, um dia, já usaram elas, as crianças, como personagens centrais.
O ELEMENTO SHREK “Suspeito que podia ser um truque inteligente esse de usar crianças em tirinhas. Isso porque as crianças mandavam os pais comprar o jornal de domingo, que era mais caro, pra que elas pudessem ler essas tiras”, acredita André Conti. Funcionando como porta de entrada para leituras subjetivas para cada faixa etária, as tirinhas estreladas por crianças eram tudo, menos infantis. O fato, no entanto, é que elas conseguiam dialogar com todos os públicos.
“Dia desses fui assistir ao novo Shrek com meu filho. Ele ria muito de umas coisas enquanto eu ria com outras. O filme é feito para agradar a nós dois e sinto falta disso hoje nas tirinhas que, com algumas exceções, são mais focadas no público mais velho”, diz Sidney Gusman.
A citação a Shrek lembra que o desaparecimento das crianças nas tirinhas de quadrinhos é mais um fenômeno de mídia que de mudança de comportamento. Afinal de contas, qual a criança que pega um jornal hoje? Com franquias de animação, games e redes sociais, fica difícil imaginar meninos e meninas indo buscar algum tipo de diversão em tirinhas de quadrinhos. De certa forma, isso libertou vários artistas de uma necessidade de mercado que havia em atrair o público mais jovem e introduzir neles as primeiras noções de histórias seriadas.
Dispensados da obrigação de se fazer entender, os cartunistas começaram a concentrar seus esforços neles mesmos e em dilemas que não mais precisavam se desculpar por terem nascido em mesas de bar. E, a bem da verdade, as crianças não desapareceram das tiras de quadrinhos. Elas só não mais respondem por nomes familiares, nem são usadas como elemento amortizador para que os quadrinhos sejam encarados como leitura inteligente. Mafalda se espantaria com tamanha evolução e se assustaria, ela e Filipe, ao entender que, cada vez mais, os mocinhos não têm nome, porque os vilões somos todos nós.
Eis que surge então um cenário aberto para artistas como André Dahmer, Allan Sieber e Clara Gomes. Três cartunistas que publicam tiras diárias e, com propostas distintas – ainda que os trabalhos de Dahmer e Sieber sejam semelhantes em sua visão de mundo –, eles alimentam a rede com tiras que dialogam com os seus, grupos de pessoas que se entendem na universalidade das tribos e na epistemologia do cotidiano.
Dahmer é o nome por trás de Os malvados e promove ocasionalmente encontros anuais dos donos do mundo. Suas tiras não perdoam a humanidade. Sieber é o cara que assina tiras como Vida de estagiário e Preto no branco. E ele não perdoa os publicitários (e todo o resto da humanidade também). Clara Gomes é bem menos rabugenta que os dois artistas acima citados e é conhecida hoje pela tira dos Bichinhos de jardim, cujo diminutivo no título indica um tom bem mais afável com o público. Todos os três, no entanto, lidam diariamente com a piada pronta que é observar o mundo. Tentamos entender, com perguntas iguais que foram enviadas separadamente a eles, de que maneira suas tiras refletem uma consciência crítica que, para repercutir, não pode de maneira nenhuma ser levada a sério.
As tirinhas têm uma história intimamente ligada a uma crítica política e social, embora essa crítica nunca tenha sido um pré-requisito. Você acredita que contextos históricos ajudam a instigar autores a criarem um humor de preocupações sociais ou essa instigação nasce em cada autor, independente do tempo em que ele se encontra? André Dahmer - Claro que o momento histórico conta muito, mas acho que é mesmo uma questão pessoal, de vocação. Conheço gente que nasceu para fazer humor de cunho político, simplesmente não consegue fazer outra coisa.
Allan Sieber - Pessoalmente acho que todo cartunista tem que ter uma visão crítica do mundo, o que não impede, porém, o surgimento de cartunistas retardados e de quase extrema direita.
Clara Gomes - Todo trabalho artístico reflete as vivências e anseios do autor. Mas até na época da ditadura explícita existiam pintores que enchiam telas de vasos floridos. Acho que o autor escolhe a linha de seu trabalho e coloca suas verdades ali. Se ele está presente, se é questionador e inquieto, isso vai aparecer no desenho, no texto...
Várias crianças já serviram de porta-voz para autores que, de certa forma, foram excepcionais cronistas de seu tempo: De Sobrinhos do Capitão, passando por Charlie Brown, Mafalda até mais recentemente Calvin. Por que as crianças foram sumindo das tirinhas?
Dahmer - Acho que os quadrinhos ganharam de vez o público adulto, hoje não é feio um cara de 40 anos ler quadrinhos no metrô. Talvez tenha relação com isso, mas talvez seja o mundo que está ficando muito duro, não sei...
Sieber - É uma boa pergunta. Talvez tempos atrás as crianças eram “mais crianças”, no sentido de serem uma tela em branco, um ser ainda em formação, cheio de questionamentos sobre o mundo e o que as cerca. Hoje em dia a criança é bombardeada pela TV, videogames e internet e creio que não precisa se fazer muitas perguntas. É só ir no Google. Clara - Ainda vejo crianças em tirinhas muito bacanas, como nos trabalhos do Liniers, Kazu Kibuishi, do meu amigo Pablo Carranza... Mas, no âmbito geral, ainda existe uma necessidade de os artistas brasileiros mostrarem que quadrinhos não são ‘coisa de criança’.
Na época da Mafalda, havia um inimigo público bastante visível: o capitalismo. Hoje, não há mais mundo bipolar e o inimigo público é um ser cada vez menos palpável (talvez os inimigos sempre tenham sido os “ismos”). Fica mais fácil fazer tirinhas que tocam na ferida quando somos nós os “malvados”?
Dahmer - Não somos os inimigos, mas também não somos vítimas de um mundo imutável. O mundo é uma construção coletiva e dinâmica, todos nós devemos ficar atentos para isso. Malvados fala de egoísmo, ganância, falta de percepção do outro... É a minha contribuição para o mundo, para a uma construção coletiva do mundo.
Fica mais fácil ou difícil fazer tirinhas quando não temos a quem culpar?
Sieber - Sempre temos a quem culpar: nossos pais, o Governo, os publicitários. Mas a verdade é que hoje a juventude - entre 18 e 28 anos - é muito bunda-mole, demora para sair da casa dos pais e prefere não brigar com ninguém para não perder a mordomia de ter suas roupas íntimas lavadas pela mamãe. Esses dias conheci um cara que se orgulhava de nunca ter fumado maconha até os 25 anos. Veja bem.
Clara - As esperanças foram diluídas pelas promessas vazias do consumismo (olha, sobrou um ‘ismo’ aí!). É difícil pra todo mundo que trabalha com arte e fácil pra quem se dedica ao entretenimento. Mas o humor pode se encaixar no meio dos dois, trazendo questões e reflexões sem causar mal-estar. É um desafio interessante.
A ideia de “futuro” é algo que se passa na sua cabeça quando você pensa suas tiras?
Dahmer - Gosto do presente, não planejo muito a vida. Acho arrogante, a vida e o destino são incontroláveis. Por outro lado, quero ficar velho, gosto da vida e pretendo apagar a luz quando a festa acabar.
Sieber - Não, é mais a ideia de “no future”, berrada pelo jovem John Lydon no disco dos Sex Pistols gravado há mais de trinta anos.
Clara - O futuro nos assombra em todas as atividades do dia. Estamos sempre fazendo algo e pensando no depois, ao mesmo tempo. Mas quando realizo meu trabalho, preciso estar no momento presente. Num trecho do Rubayat, Omar Kháyyám diz: “De que serve repetir que o tempo sob os nossos pés já vai fugindo? O amanhã não nasceu e o ontem já morreu, por que hei de me importar, se o dia de hoje é lindo?”
“Ideologia, eu quero uma pra viver”. Ainda se compra essa ideia?
Sieber - Compra, mas no mercado negro e é de segunda mão.
Dahmer - Não ter ideologia também é uma ideologia. É como ser ateu: apenas mais uma forma de crença. Claro que o dinheiro pelo dinheiro é uma das mais sólidas ideologias vigen tes, mas há muita gente pensando o mundo de outra forma, conheço muitas.
Clara - Com certeza. Talvez a ideologia de políticas partidárias esteja em baixa, mas shows de rock e as igrejas estão lotados, não? A busca de um significado maior continua.
O conceito da tese, antítese e síntese ainda ajuda a construir uma tira?
Dahmer - Uma tirinha precisa ser engraçada, simples assim.
Sieber - Nunca usei isso, mas começarei a pensar sobre.
Clara - Aprendi tudo intuitiva e empiricamente. Não sei filosofar sobre o tema...
Se alguém te falasse que o seu trabalho é uma ferramenta de consciência crítica, o que você diria?
Clara - Eu diria: “Se for uma ferramenta de consciência crítica divertida, fiz um bom trabalho.”
Dahmer - Pediria para me pagar uma bebida.
Sieber - Eu diria que essa pessoa está lendo os livros errados ou passa muito tempo na internet.
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