Décadas antes de os Estúdios Disney dominarem o cinema de animação mundial, a Europa foi palco das primeiras experiências de transposição de figuras animadas às telas do cinema, mesmo antes da invenção do próprio. A França foi o país pioneiro, com os trabalhos de Émile Reynaud (1892) e Èmile Cohl (1908).
Os países da América Latina, entre eles o Brasil, também ostentam uma história de sangue, suor, lágrimas e uma porção de acetatos pintados, onde alguns homens mostraram que através do esforço isolado e quixotesco se pode vencer os moinhos de vento da burocracia, da falta de recursos e de incentivo.
Em 1917, para surpresa geral, um italiano radicado na Argentina, Quirino Cristiani, dirigiu El Apóstol, o primeiro longa-metragem de animação de que se tem registro, com setenta minutos de duração, feito em 14 frames por segundo.
Nesse mesmo ano, nascia no Brasil uma técnica que viria a ser maciçamente empregada nos primórdios da animação tupiniquim, a charge animada, com a exibição de Kaiser, de Álvaro Marins, o Seth. Embora seu formato tenha tornado-a mais atrativa à publicidade do que ao cinema, Luiz Seel deu projeção à charge animada através de uma série produzida em 1928, em parceria com o caricaturista Belmonte, batizada de Brasil Animado, composta por seis pequenas animações.
Além das peças publicitárias, a educação também deu suporte para o aprimoramento das técnicas do nosso cinema de animação. O Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), que atuou de 1936 a 1966, investiu na primeira animação em stop motion brasileira, intituladaO dragãozinho manso, dirigida por Humberto Mauro, em 1942, além de diversas animações (mudas e sonoras) sobre história, geografia, literatura, medicina, física e química. Da mesma forma que o INCE, o Serviço Especial de Saúde e a Petrobrás realizaram animações educativas, dirigidas às escolas e à televisão.
Porém, foram os irmãos Latini, Anélio Filho e Mário, os maiores responsáveis pelo cinema de ficção animado brasileiro, não estando atrelados à publicidade e nem à educação. Já em 1940, os Latini criaram o curta-metragem mudo Os Azares de Lulu e, em 1953, Sinfonia Amazônica foi o primeiro longa-metragem animado, produzido no Brasil. Agraciado com a Estatueta Saci de Cinema e ganhando diversos prêmios, como o da Comissão Nacional do Folclore da UNESCO e o do Festival Nacional Cinematográfico do Rio de Janeiro, Sinfonia Amazônica foi o esforço hercúleo de Anélio Latini Filho para ver seu projeto ganhar vida, ainda que não tenha sido uma experiência rentável. Em 1977, Anélio ainda tentou relançar uma cópia restaurada de Sinfonia Amazônica, mas foi vítima do sistema político-cultural da ditadura militar.
Na década de 1950, pela primeira vez o cinema de animação brasileiro teve bastante projeção internacional. Isso ocorreu devido às animações experimentais e abstratas de Roberto Miller, como Rumba (1957), Boogie Woogie (1957) e Som Abstrato (1958), as quais ganharam prêmios em Lisboa, Bruxelas e Cannes, incentivando outros artistas a produzirem desenhos diretamente na película, como o fizeram o roteirista Rubens Francisco Luchetti e o artista plástico e cenógrafo Bassano Vaccarini, criadores do Centro Experimental de Cinema de Animação de Ribeirão Preto.
Superando todos os óbices do caminho, durante as décadas de 1960 e 70 formaram-se diversos grupos produtores de animação, embora as empreitadas solitárias ainda existissem, como a do quadrinista José Mario Parrot Bastos, realizador do primeiro curta animado nacional feito em computador, Balé de Lissajous, em 1971.
O amazonense Álvaro Henrique Gonçalves produziu, entre 1965 e 1971, o segundo longa de animação nacional, Presente de Natal, cuja direção ficou a cargo de Ypê Nakashima, imigrante japonês responsável, inclusive, pela quebra da forma tradicional tupiniquim de se fazer animação, iniciando um modelo profissional de trabalho em equipes, com o longa-metragem Piconzé (1972).
Piconzé se tornou um marco para vários dos nossos animadores e desenhistas, como relata o animador gaúcho Otto Guerra: “Em 1973 assisti a Piconzé. Eu fazia HQ e isso era tudo para mim naquela época. Fiz uma oficina de desenho animado, também em 1973, e trabalhei numa produtora de argentinos, em Porto Alegre, em 1977.”
Já a década de 1980 foi marcada por uma enxurrada de animações, em sua maioria curtas-metragens e animação publicitária, liderada pela Mauricio de Sousa Produções e pelos estúdios de Walbercy Ribas e de Daniel Messias. Boa parte das produções dessa década foi fruto da parceria que a EMBRAFILME estabeleceu com o National Film Board of Canada, em 1985. No ano seguinte, Marcos Magalhães, que vinha realizando uma porção de curtas animados em super 8, ministrou um curso chave para os nossos animadores, também em parceria com o instituto canadense.
“Surgiram 5 ou 6 núcleos de animação regionais que perduraram tempo suficiente para formar pequenos grupos de trabalho. Aqui no sul, Rodrigo Guimarães segue até os dias de hoje trabalhando com animação. Rio Grande do Sul, Ceará, Pernambuco, Minas e Bahia, se não me falha a memória, foram beneficiados, além de Rio e São Paulo”, diz Otto Guerra.
Os cursos de animação oferecidos pelo Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, despertaram o interesse por essa mídia em adolescentes e adultos, um deles foi animador Alê Abreu, que com treze anos teve a chance de realizar seu primeiro curta amador, Memória de Elefante, em 1984: “Uma vez dentro do museu, acompanhava as exposições, pequenas mostras de cinema, lançamentos, e o próprio acervo do museu. Além disso, o Sergio Tastaldi, meu orientador, tinha uma estante forrada de quadrinhos e livros de animação: Moebius, Manara, Enki Bilal…”.
Os anos 1990 marcaram, além de o início do Anima Mundi – Festival Internacional de Animação do Brasil, concebido pelos animadores Marcos Magalhães, Cesar Coelho, Aida Queiroz e Léa Zagury –, a retomada da produção de longas-metragens animados para serem exibidos no grande circuito, entre eles Rock & Rudson (1994), de Otto Guerra, eCassiopeia (1996), de Clóvis Vieira, esse último ainda disputa pelo reconhecimento de primeiro longa-metragem de animação do mundo a ter sido totalmente feito em computador, antes mesmo de Toy Story, da Pixar.
Entre o final dos anos 1990 e o primeiro decênio do século XXI, a tecnologia vem sendo a parceira fundamental na produção das animações, não só no Brasil, mas em todo o globo.
Alê Abreu relembra como era o processo de produção arcaico: “Os filmes eram, primeiro, animados no papel, depois passavam pelos processos de intervalação e clean-up. Numa quarta etapa, os desenhos eram arte-finalizados em folhas de acetato e, depois de prontos, pintados no verso. Tudo era filmado quadro a quadro. Os acetatos eram posicionados sobre um fundo fixo (o cenário), geralmente uma pintura a guache. Para ver o resultado, o negativo ainda tinha que seguir para o laboratório para revelação e copiagem.”
Atualmente, o cinema de animação brasileiro conta com ótimos longas-metragens voltados tanto para o público infantil – comoOs Brichos (2006), de Paulo Munhoz, Garoto Cósmico (2007), de Alê Abreu, O Grilo Feliz e Os Insetos Gigantes(2009), de Walbercy e Rafael Ribas, e os Cini Gibi da Turma da Mônica, da Mauricio de Sousa Produções – quanto para o público adulto, seguimento esse que vem ganhando aos poucos mais projeção e espaço desde Wood & Stock – Sexo, Orégano e Rock’n’roll (2006), de Otto Guerra, e já conta com três projetos previstos a serem concluídos até 2012: Lutas – o filme, Fuga em Ré Menor para Kraunus e Pletskaya (que deve mudar o título para Até que a Sbórnia nos separe) e A Cidade dos Pirata.
Outro foco das animações nacionais é o 3D, encabeçado por uma série de animações com personagens da Turma da Mônica, para a TV, sendo o primeiro deles O Penadinho (exibido em primeira mão na Rio Comicon, ano passado), e atraindo a atenção até de animadores mais tradicionais, como Otto Guerra, que se encontra em processo de testes para converter Fuga em Ré Menor para Kraunus e Pletskaya nesse formato, como ele mesmo conta:
“Estamos, junto à empresa Mono, de São Paulo, captando verba pra fazer esse render em 3D. Montamos uma mesa dento do 18° AnimaMundi, e lá exibimos um promo com 2 minutos do Fuga em Ré Menor para Kraunus e Pletskaya, em 3D.”
Animadores de gabarito o Brasil tem até para exportação, vide Carlos Saldanha, que quase desbancou a Pixar com Rio, mas ainda há aqueles que desistem por causa dos reveses da burocracia e, para esses, Alê Abreu, em fase de produção do seu segundo longa-metragem animado, Cuca no Jardim, manda um recado:
“Produzir cinema é algo bastante difícil e poucos artistas tem estômago de produtor. Talvez eu não tenha, mas minha vontade de realizar livremente meu próprio trabalho é muito grande.”
Algumas animações que tem lançamento previsto até 2012:
- Minhocas – o filme, de Arthur Nunes e Paolo Conti.
- Lutas – o filme, de Luiz Bolognesi.
- A Floresta é Nossa, de Paulo Munhoz.
- As Aventuras do Avião Vermelho, Frederico Pinto e José Maia.
- Peixonauta 3D, da TVPinGuim.
- Fuga em Ré Menor para Kraunus e Pletskaya ou Até que a Sbórnia nos separe, de Otto Guerra.
- A Cidade dos Pirata, de Otto Guerra.
- Nautilus, de Rodrigo Gava e Clewerson Saremba.
- Ivete Stellar e a Pedra da Luz, de Renato Barreto.
- Astronauta 3D, da Mauricio de Sousa Produções.
- Historietas Assombradas, de Arthur Nunes e Paolo Conti.
- Cuca no jardim, de Alê Abreu.
Confira a seguir a Entrevista com Marta Machado (Presidente da Associação Brasileira de Cinema de Animação – ABCA)
1) Até 2012 estão previstas as estreias de, pelo menos, 13 animações nacionais. A que se deve esse “boom” da animação no Brasil?
Existe um “boom” de fato, não só de produções de longas-metragens, mas também um bom momento de produção de séries para a TV. Tudo isso é fruto de uma construção que se vem fazendo ao longo dos últimos dez anos e, de forma mais organizada, desde a criação da ABCA, que estabeleceu uma interlocução mais forte e mais contínua entre as pessoas que trabalham nesse setor e as instituições de fomento.
Lembro que esse “boom” de produção de animações não é apenas nacional, é algo que está acontecendo no mundo todo, nesse momento, e isso tem muito a ver com os avanços tecnológicos que possibilitam a produção de animação em qualquer parte do planeta.
2) Há críticas severas sobre o dinheiro público ser o grande financiador das produções do cinema nacional. E entre os realizadores, a “briga” gira em torno dos benefícios que Rio e São Paulo tem em torno desses projetos. A seu ver, qual seria a melhor e mais justa forma de se arrecadar verba, em especial para o cinema de animação, que ainda é visto como gênero “infantil” por aqui?
Bom, a disputa pelo fomento acontece na produção audiovisual como um todo. Existe, sim, uma concentração de recursos no Rio e em São Paulo porque são lugares onde estão basicamente os principais financiadores e gestores de projetos e isso facilita a articulação. Porém, não necessariamente as melhores ideias estão nesses locais.
O AnimaTV, por exemplo, contou com oficinas descentralizadas, em diversas cidades brasileiras, teve 17 projetos selecionados, desses uma boa parte foi de projetos fora do “eixo” [Rio-São Paulo]. Em um segundo momento, que teve 257 projetos inscritos de vários pontos do país, sendo 40% dos projetos de São Paulo, novamente 17 projetos foram selecionados, sendo produzidos pilotos, os quais foram veiculados na TV e submetidos a testes de audiência e a uma série de medições para subsidiar a decisão de um terceiro momento do processo, que foi a escolha de duas séries com produção de 12 episódios, cada. Dessas duas séries, uma é produção do Rio e outra do Paraná. Isso demonstra que as boas ideias não necessariamente estão onde está a maior parte das ideias.
Esse trabalho de garimpar as boas ideais, onde quer que elas estejam, é fundamental, e mais do que isso, eu acho que a gente tem uma construção cultural no Brasil, uma diversidade tão gritante, que faz com que ideias muito inusitadas nasçam em lugares muito peculiares, onde essa configuração está menos urbanizada ou menos “contaminada” pela globalização, enfim. É trabalho do Governo, como investidor e impulsionador dessa indústria, fazer essa garimpagem. É muito fácil deixar que os recursos todos se concentrem no Rio e em São Paulo e achar que isso é tudo. Mas não é. Tem que se incentivar os produtores locais de outras regiões. Isso tudo faz parte de um projeto de desenvolvimento que deveria ser do país.
3) Na sua gestão como Presidente da Associação Brasileira de Cinema de Animação, há algum projeto para restaurar, exibir e montar um acervo com alguma das nossas animações clássicas?
Na verdade, a preservação da memória não é um forte do Brasil como um todo. A animação é uma arte com produção relativamente recente e não existem muitos caminhos para se fazer restauro dessas produções, hoje. E, do ponto de vista da ABCA, embora esteja lá nos seus princípios uma preocupação com restauro e gravação, ela não tem “perna” pra dar conta de tudo que precisa ser feito. Então, nesses primeiros anos da ABCA, o foco sempre foi mesmo o da articulação política pra criar instrumentos e mecanismos de fomento pra indústria. Num próximo momento, talvez, a gente consiga realmente se preocupar mais com a questão do acervo e da preservação.
Uma boa notícia, que a gente recebeu de muito bom grado, foi saber que o “Meow”, um curta brasileiro de animação que foi premiado fora, um curta bastante importante na história da animação brasileira [de Marcos Magalhães, realizado em 1981], vai passar por um processo de restauro. Mas isso só foi possível porque veio através de um edital da Cinemateca e o realizador o inscreveu para o processo de restauração. E o Meow não é um filme tão antigo, também. Então, a restauração é algo que se deve a esforços pessoais. Talvez esse seja o primeiro momento, digamos assim, de se começar a pensar mais seriamente sobre isso.
4) Há algum tipo de parceria entre a Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA) e o Anima Mundi?
Sim, nós somos parceiros, principalmente dentro do AnimaForum. A gente sempre colabora muito com sugestões de pauta, de discussões, pra esse que está se tornando um importante encontro mais focado na produção, na viabilização, em pensar a produção de projetos audiovisuais de animação brasileira. O AnimaTV é o resultado concreto dessa parceria porque nasceu dentro do AnimaForum de 2007. Na verdade, foi basicamente uma brincadeira que a gente fez, convidando o Paulo Alcoforado, que na época trabalhava no Ministério da Cultura, e hoje ele é um dos diretores da Ancine, pra uma mesa, pra que ele fizesse um exercício de pensar como seria adaptar o modelo do DocTv para a animação. E esse exercício virou um projeto que foi levado à diante, dentro do Ministério, pelo Paulo, que se transformou num dos projetos que, na minha opinião, é um dos mais ricos e importantes pra relação da TV com a animação brasileira. A gente está no meio desse percurso e já tem grandes frutos. Esse ano, teremos uma avaliação do AnimaTV, dentro do AnimaForum, com os realizadores da última etapa, com o Ministério da Cultura, com as TVs parceiras, com a ABCA, pra ver os erros e acertos dos processos e dos encaminhamentos para novas edições.
Links para assistir a algumas das animações mencionadas nessa matéria:
Sinfonia Amazônica: http://animamundifestival.blogspot.com/2009/07/como-foi-feito-o-primeiro-longa.html
Piconzé (pode-se assistir a animação, na íntegra, em tempo real):http://www.nucleovirgulino.com.br/ypenakashima/ype_piconze.htm
Curtas-metragens: http://www.portacurtas.com.br/
OBS: Matéria feita por mim para a Revista MOVIE, ano passado, mas que infelizmente não foi publicada devido ao encerramento das atividades do periódico.
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