Por André Miranda - O Globo
Algumas gerações de brasileiros, que por mais de 50 anos cresceram lendo a principal revista infantil do país na primeira metade do século XX, podem se considerar órfãs. As duas primeiras edições do almanaque "O Tico-Tico" - a primeira revista em quadrinhos do Brasil -, publicadas em 1905, foram furtadas da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), no Rio. O crime ocorreu há cerca de um ano, depois de a instituição receber um investimento milionário em segurança, e nunca veio a público. A direção da biblioteca diz não se manifestar sobre o assunto por recomendação da Polícia Federal, para não interferir nas investigações. Até hoje, as revistas, extremamente raras e consideradas uma das preciosidades do acervo da FBN, não foram recuperadas.
Os problemas da Biblioteca Nacional, porém, não se encerram no que acontece nas áreas públicas da instituição. Um levantamento feito pelo GLOBO em pregões e empenhos para compra de material indicam que o órgão vem adquirindo produtos com preços duas, três, cinco e até dez vezes mais caros do que os encontrados no mercado. A prática chama a atenção porque, em pregões, os órgãos públicos avaliam as ofertas de empresas concorrentes e escolhem exatamente aquelas que estipulam o preço mais barato para o produto pedido. Mesmo assim, entre outros itens, a FBN recebeu este ano um HD de 300 gigabytes para servidor num custo de R$ 5 mil. O preço sugerido pelo fabricante é de R$ 1.100.
A revista "O Tico-Tico" foi publicada regularmente, às quartas-feiras, entre 1905 e 1957. A partir dali, o almanaque teve edições especiais até 1977. Personagens como Gato Félix, Mickey Mouse e Popeye apareceram no Brasil pela primeira vez nas páginas de "O Tico-Tico". Entre seus ilustradores, estiveram nomes importantes das artes brasileiras, como J. Carlos, Luiz Sá e Angelo Agostini. Em 2005, quando o semanário completaria cem anos, dada a sua importância, a própria Biblioteca Nacional organizou uma exposição de três meses com parte de seu acervo da revista.
A suspeita da Polícia Federal é de que o furto tenha sido ação de criminosos que se passaram por pesquisadores na seção de periódicos da instituição e simplesmente guardaram as duas edições da publicação em bolsas ou casacos, saindo sem serem notados. O crime teria ocorrido em maio, mas a FBN afirma só ter comunicado o fato à Delegacia de Repressão a Crimes Contra o Meio-Ambiente e Patrimônio Histórico, da Polícia Federal, em agosto de 2010.
A investigação da PF aponta como principal suspeito dos furtos da revista o estudante Leonardo Jorge da Silva. No fim de julho, antes da denúncia da FBN à polícia sobre "O Tico-Tico", Leonardo Jorge foi preso em flagrante, numa rua de Copacabana, por outro crime: ele estava de posse da tela "Enterro", de Candido Portinari, furtada do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, 15 dias antes. Em sua agenda, a PF encontrou os números de referência das duas "O Tico-Tico" retiradas da biblioteca. A investigação segue em curso.
- É uma notícia horrível. Se não me engano, a Biblioteca Nacional era a única instituição que tinha a coleção completa de "O Tico-Tico" - diz Waldomiro Vergueiro, professor da USP e organizador do livro "O Tico-Tico: centenário da primeira revista em quadrinhos do Brasil". - É impossível precisar o valor econômico das revistas furtadas. Mas eu posso falar da perda cultural. "O Tico-Tico" era muito valorizada por pais e professores porque tinha um compromisso forte com a educação. As histórias em quadrinhos estrangeiras chegaram pela primeira vez ao Brasil por meio da publicação. O Rui Barbosa citou a revista num discurso no Senado. O Carlos Drummond de Andrade fez um crônica sobre ela. É um pouco da memória do país que se vai.
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