segunda-feira, 18 de julho de 2011

A sedução dos inocentes

Em novo livro, o jornalista Gonçalo Junior recupera um dos capítulos da história dos quadrinhos no Brasil: quando as editoras apostaram em material nacional

Eros e quadrinhos eróticos: títulos nacionais de quadrinho erótico, publicados pela Grafipar. Os exemplares são da coleção de Sílvio Amarante, da Revista & Cia.


Ao ver bancas de revista e comic shops tomadas por títulos japoneses e norte-americanos, é difícil imaginar que o mercado das histórias em quadrinhos um dia foi, também, brasileiro. Artistas de qualidade e projetos nunca faltaram. Contudo, há muito não se emplaca um sucesso comercial de um título nacional.


Daí a estranheza quase kafkiana que provoca a leitura de "Maria Erótica e o Clamor do Sexo", de Gonçalo Junior. O livro é a sequência do clássico instantâneo "Guerra dos Gibis" (2004), reportagem historiográfica sobre o boom do negócio dos quadrinhos no Brasil, de meados dos anos 1930 às vésperas do golpe militar de 1964. Os protagonistas: dois gigantes do mercado editorial brasileiro, os jornalistas Adolfo Aizen (criador da extinta Ebal) e Roberto Marinho (do grupo Globo).


O segundo volume de "Guerra dos Gibis" retoma de onde o primeiro parou. A história se concentra no período que vai de 1964 a 1985, quando gente nova arriscou no mercado dos quadrinhos, pegando filões não aproveitados pelas grandes editoras. Mais uma vez, alguns personagens ficam em primeiro plano, no caso, os descendentes de japoneses Minami Keizi e Claudio Seto.


Os dois têm histórias semelhantes: nasceram em famílias empobrecidas, começaram por baixo, trabalhando para pequenas casas editorais e recebendo pouco por isso, até investirem em novos mercados, em novas formas de comercialização do material gráfico.


"´Maria Erótica´ é meu trabalho de conclusão, no curso de jornalismo, em 1993. Ele é o começo de tudo. O ´Guerra de Gibis´ nasceu exatamente da necessidade que eu sentia de uma introdução ao tema. É o livro da minha vida. O projeto para o qual eu mais me dediquei e com o qual mais me envolvi emocionalmente. Os personagens se tornaram grande amigos, de duas décadas, e, infelizmente, morreram antes de verem o livro editado", explica Gonçalo.


Ser eleito o favorito de seu autor não é mérito pequeno. Gonçalo Junior é o grande pesquisador a história dos quadrinhos no Brasil. Habilitado por uma visão crítica, um conhecimento enciclopédico e apaixonado do meio, ele publicou alguns dos melhores títulos sobre as HQs no Brasil. Destacam-se, entre seus títulos, o irretocável "Guerra dos Gibis" e "O Mocinho do Brasil", uma história editorial do caubói italiano Tex em território nacional.


O texto original tinha 960 páginas. Caiu para 630, para ser aceita pela banca de professores. "De lá pra cá, o projeto mudou muito. É um trabalho que comecei quase adolescente. À medida que fui amadurecendo, cronológica e psicologicamente, tentei melhorá-lo, tentando ouvir novamente minhas fontes. Consegui voltar a absolutamente todos os entrevistados. De 1996 até março desse ano, me empenhei de fazer o texto final", relembra.


Micro-histórias

Cabem muitas histórias nas quase 500 páginas do livro. As editoras Edrel e Grafipar, que têm papel central no livro, mergulharam no esquecimento.


Contudo, Gonçalo Junior destaca sua importância, sobretudo no que toca a arte erótica nas HQs. Tanto que leva o autor a relativizar a importância do grande nome brasileiro deste segmento.


"Há um mito em torno de Carlos Zéfiro e os catecismos (HQs pornográficas). A história que se conta é completamente exagerada, desinformada e equivocada. Os caras copiavam as histórias e o sistema de distribuição era muito, muito limitado. Poucas bancas tinham catecismos. Eram milheiros. As pessoas não ganhavam dinheiro com isso, era mais por diversão", comenta o autor Gonçalo Junior.


Ao contrário, Keizi e Seto fizeram dinheiro com dezenas de títulos, de vendagem expressiva. "Eles chegaram a ter 40 títulos nas bancas no começo da década de 1970. A Edrel (empresa em que Keizi) publicou 100% de material nacional", cita o autor.


Havia muito de idealismo na empreitada - e, talvez por isso, seus autores não tenham sido tão hábeis contra a malícia do mundo real. "A Ebrel era feita por descendentes japoneses que liam mangá desde a infância. Por isso, o livro conta a origem do mangá no Brasil. Claudio Seto e Fernando Ikoma eram corajosos e mandavam ver em temas polêmicos, como incesto e lesbianismo. Foram desbravadores num universo que era bastante família".


"Em 72, houve uma briga entre os sócios, e o Keizi saiu para criar a M&C. Ele republicou material norte-americano, como outras editoras faziam, e lançou o Conan no Brasil, em 1972".


Repulsa ao sexo

Parte da história contada por Gonçalo Junior já era conhecida, com bem menos detalhes, pelos pesquisadores. Um dos trunfos de seu trabalho é a cronologia do embate do editor Minami Keizi com a censura. "Ele guardou quase 300 cartas dos censores. Ele foi levado à falência pela censura. Publicava as revistas e não podia distribuí-las. Foi aniquilado", conta.


O curioso é que o editor não tinha ligações com os opositores do regime. "Os militares diziam que a pornografia era uma arma do regime comunista de Moscou para desestruturar a família. Na URSS, se dizia coisa parecida, só pelo avesso: a pornografia era uma tentativa capitalista de tirar o foco da revolução", comenta Gonçalo Junior.


História

Maria Erótica e o Clamor do Sexo
Gonçalo Junior


Peixe Grande
2010
496 páginas
R$ 69,90


Fique por dentro
Polêmica

Minami Keizi publicou quadrinhos eróticos no Brasil quando a própria linguagem era sinônimo de polêmica. Em 1965, o historiador Carlos Studart Filho, do Instituto do Ceará, publicou na imprensa uma série de artigos que repercutia o livro "Seduccion o "Seduction of the Innocent" ("Sedução do inocente"), do psiquiatra norte-americano Frederic Wertham. As HQs eram sinônimo de delinquência. "As histórias em quadrinhos não endeusam apenas a violência e o crime. Ensinam as técnicas adequadas a praticá-los", anotou Studart.


Por DELLANO RIOS - Diário do Nordeste

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