Isso vale também para quem quer trabalhar com as histórias em quadrinhos na sala de aula. Pode acontecer de determinado professor gostar muito de certa história, série ou personagem e querer trabalhar este material com os seus alunos. Nada contra. Mas, pode acontecer também que o material escolhido não tenha repercussão entre os alunos, embora tenha tido para o professor. Por isso é importante que o professor, antes de definir o material, considere sempre a realidade social e cultural da qual seus alunos se originam: o que esta cultura lê e privilegia, que personagens e histórias conhecem, que vocabulário utilizam, que necessidades existenciais são predominantes na comunidade, que tipo de produção cultural já se realiza naquele meio. Dependendo do assunto que será trabalhado talvez seja interessante pedir, se já existe a prática de leitura dos quadrinhos na comunidade, que os alunos tragam seus quadrinhos preferidos para a sala, que se identifiquem os personagens e histórias mais significativas para aquilo que se pretende e, no diálogo com os alunos, decida-se, finalmente, com qual material trabalhar. O processo é um pouco mais demorado, mas pode gerar resultados mais efetivos do ponto de vista da elaboração e da construção do conhecimento.
Não estou com isto sugerindo que o professor não possa definir o material. Haverá situações em que o professor precisará tomar esta decisão. O que estou sugerindo, de fato, é que sempre que o processo puder envolver a participação dialogal com os alunos o professor não deveria perder a oportunidade de fazê-lo. Finalmente, é importante lembrar que escolher sempre é responsabilidade e risco, aliás, como tudo o que é humano. Não há como ter absoluta certeza que uma escolha terá sucesso antes de realizá-la, embora a experiência prática possa ter certa previsão de resultados. Vale lembrar Platão: “Todas as coisas grandes acontecem no meio de um grande risco “.
7. Uma educação para uma cultura visual.
Tenho visto que nas escolas as histórias em quadrinhos, frequentemente, têm sido associadas com o estímulo à leitura. Não acho que tal posição esteja errada, embora eu também veja outra, ligada a esta, que aí sim considero inadequada: quando o professor usa as histórias em quadrinhos como um estágio de passagem para a leitura de livros, como se os quadrinhos fossem algo menor que, depois, devessem ser abandonados para ficar com a leitura, esta sim séria e proveitosa, dos livros. Ora, entendo que o leitor pode ler com proveito, ao longo de toda a vida, tanto as obras literárias, nas mais diversas classificações, quanto as histórias em quadrinhos nos seus também diversos gêneros.
Mas considero que há uma contribuição especial que as histórias em quadrinhos trazem e que precisa ser melhor aproveitada nas escolas: ela auxilia o leitor a trabalhar não apenas com a interpretação do texto escrito, mas com a interpretação da imagem. Este é um passo importante. Os estudos de Cultura Visual estão mostrando que a escola tradicional que conhecemos é “logocêntrica” (logus = palavra), isto é, tem a escrita e sua leitura como centro. Sem dúvida isto é importante, por conta da cultura escrita que desenvolvemos, mas não é suficiente para nós, seres humanos, que temos nos constituído também como seres imagéticos, visuais. Em nosso cotidiano lidamos com imagens o tempo todo: propagandas de TV, revistas, jornais, outdoors, cartazes, internet, filmes; colecionamos fotografias de famílias, pessoas queridas, “astros e estrelas”, atividades pelas quais somos apaixonados; decoramos os espaços de nossas casas e ambientes de trabalhos com obras de pintura, escultura, fotografias e outros tipos de imagens; sonhamos por meio de imagens que, muitas vezes, permanecem impressas em nossa memória por longo tempo. Ou seja, e repetindo: somos seres imagéticos.
Com toda esta importância das imagens em nossas vidas, ainda é pobre o trabalho que é feito nas escolas no sentido de desenvolver uma cultura visual. Embora as histórias em quadrinhos sejam apenas uma forma pelas quais as imagens aparecem em nosso cotidiano, por se fazerem uma linguagem extremamente eficaz, pode ser um poderoso recurso para auxiliar o desenvolvimento, entre alunos e professores, de uma cultura visual. Detalhe: trabalhar pela elaboração de uma cultura visual não é tarefa apenas do professor de artes, mas é um desafio para todos os professores que trabalham em diferentes áreas da proposta curricular de uma escola.
8. O propósito de atingir os objetivos educacionais definidos não deve levar o professor ao equívoco da didatização das histórias em quadrinhos.
Recentemente li um artigo intitulado “Cinema e experiência estética”, no seguinte endereço eletrônico aqui. Vale a pena conferir seu conteúdo. Nele encontrei algo que cabe perfeitamente como um lembrete para quem queira trabalhar com as histórias em quadrinhos. É o seguinte:
Ver um filme, ir ao cinema, deve entender-se como o prazer de desfrutar uma obra de arte ou um entretenimento de fundo cultural, nunca como uma fonte de preocupações escolares, simplesmente como recurso didático, como introdução de inovação tecnológica na escola (...) insistimos na perspectiva de que "didatizar" ou "escolarizar" o cinema é empobrecê-lo e negar sua própria natureza e importância.
No artigo não se está defendendo que o cinema não deva ser utilizado e trabalhado na escola. Antes, ao contrário, deve ser trabalhado. O cuidado é para não empobrecê-lo desviando a atenção do aluno de toda uma enorme riqueza que ele proporciona, do ponto de vista da imensa complexidade humana, para somente chamar a atenção sobre este ou aquele ponto específico do programa definido no currículo da escola.
O mesmo vale para as histórias em quadrinhos, aliás, e digo de passagem, arte muito próxima ao cinema. Os quadrinhos também são um artefato cultural que os alunos precisam aprender a desfrutar. Para tanto precisam aprender a linguagem, desenvolver a sensibilidade, ter acesso a boas obras. Ora, somente professores que já aprenderam a desfrutar assim de uma história em quadrinhos podem ter referências suficientes para ajudar os alunos a aprenderem a fazer o mesmo. Por isso insisto tanto em que professores que querem trabalhar com as histórias em quadrinhos devem ter uma “experiência” com as histórias em quadrinhos (ver o comentário número 3). Na medida em que desenvolver esta experiência será mais fácil para ele trabalhar o conteúdo que pretende sem cair na didatização e no empobrecimento da riqueza trazida pela história em quadrinhos escolhida que, claro, precisa ser bem escolhida (comentários 4, 5 e 6).
9. Acredito que cada professor que pretende trabalhar com as histórias em quadrinhos irá criar sua própria metodologia.
Quando escrevi a primeira parte deste artigo, logo no começo, disse que não acreditava ser possível descrever uma metodologia, para trabalhar com as histórias em quadrinhos, que servisse a todos os professores e que desse conta de todas as especificidades que cada um deles encontra em suas salas de aula, cada uma delas, dependendo da localização geográfica e cultural, muito diferentes entre si. Este é o motivo porque prefiro falar em alguns princípios para trabalhar com os quadrinhos, alguns dos quais estou apresentando nestes comentários.
O que acredito, e recomendo, é que cada professor vá construindo sua própria metodologia para trabalhar com as histórias em quadrinhos. Isso exigirá da parte do professor o seguinte: planejar bem o trabalho, realizar a proposta com os alunos e, depois, avaliar reflexivamente verificando o que foi bom e positivo e que, portanto, pode ser mantido e aperfeiçoado, mas também identificando o que foi ruim, ao menos naquela situação concreta, e que deve ser evitado. Tomar esta postura é fazer o que sugeria Paulo Freire: toda prática educativa deve ser pensada.
Eu sugiro também que o professor tenha um caderno, uma espécie de diário, onde ele possa ir anotando estas experiências: o trabalho realizado e a reflexão fruto da avaliação elaborada com os alunos e por ele mesmo. Se registrar isso sistematicamente, colecionando os planos de trabalho realizados, as imagens utilizadas, as avaliações escritas por seus alunos e sua própria avaliação, o professor verá que dali a algum tempo ele terá desenvolvido uma metodologia bem amadurecida para trabalhar com os quadrinhos. Claro que este trabalho nunca estará terminado, mas irá ajudá-lo muito na construção de novas propostas. Também poderá partilhar este material com outros colegas professores que queiram alguma referência para começar o próprio trabalho com os quadrinhos.
10. Os professores precisam ser preparados para trabalhar criativamente com as histórias em quadrinhos no cotidiano escolar. Penso que tenha sido possível perceber ao longo destes meus comentários que trabalhar com as histórias em quadrinhos exige uma boa preparação e requer, do professor, uma capacidade criativa de planejamento. Como a experiência escolar vivida por boa parte dos professores não lhes permitiu desenvolver esta capacidade de trabalhar com os quadrinhos, inclusive porque até recentemente eles eram preteridos do ambiente escolar, é necessário, então, que eles tenham oportunidade de ser preparar para tal.Hoje existem profissionais e material, impresso e na internet, que favorecem uma formação adequada dos professores para trabalhar com as histórias em quadrinhos na educação. Existem subsídios que facilitam desde fazer a crítica aos fundamentos dos métodos tradicionais da escola até aqueles que sugerem passos metodológicos concretos, passando por aqueles que auxiliam uma desconstrução, crítica e respeitosa, da trajetória formativa do professor para que ele possa reconstruí-la com maior liberdade e criatividade. Os professores podem e devem pedir que seus gestores, coordenadores e diretores, favoreçam a aproximação a estes materiais.
No próximo artigo eu comentarei alguns destes materiais, impressos e digitais, que podem auxiliar o processo formativo dos professores para trabalhar com as histórias em quadrinhos, de modo especial na educação escolar.
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