Por Shoujo Café
Estava pensando em um post sobre o Dia da Consciência Negra. Para quem não sabe 20 de novembro foi a data escolhida para lembrar da morte de Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares. Há quem ainda celebre a Lei Áurea como a data chave para a população negra no Brasil, com a bondosa princesa Isabel assinando um documento. Quem assim pensa esquece, despreza ou não conhece a luta de negros e negras ao longo de vários anos pela sua "liberdade", das estratégias para conseguir o direito de dirigirem as suas próprias vidas. Suicídios, fugas, revoltas, organização de sociedades e irmandades, economia em caderneta de poupança, quilombos, as estratégias foram diversificadas. Os brancos deram uma mão, sem dúvida, mas o protagonismo negro não pode ser esquecido, como no caso de Luís Gama que, depois de liberto, virou advogado dos escravos (*filme ou minissérie sobre esse homem, por favor!*). Enfim, Palmares foi o maior Quilombo brasileiro, símbolo de resistência e que era possível construir uma outra ordem na qual os negros não fossem obrigatoriamente subordinados aos brancos. Hoje, virou moda tentar desqualificar Palmares e Zumbi. Palmares não era uma sociedade igualitária, mas era uma sociedade construída por negros e negras e gerida por eles e elas. Percebem a chave da questão? Incomodou tanto por ser subversiva, por ser mau exemplo para os outros escravos e, por isso, foi destruída. Não precisou ser o céu na terra para ser um problema, às vezes, sonhar com algo diferente é o problema!
Para marcar a data, pensei em recomendar as excelentes Graphic Novels brasileiras, Chibata, Afro-HQ (do Prof. Amaro que organizou o evento em Recife), O Quilombo Orum Aiê, A Cachoeira de Paulo Afonso (lindíssimo), que trazem personagens negras e mestiças representadas em suas páginas. Só que depois pensei em lembrar das personagens femininas negras que marcaram a minha infância ou ficaram na minha memória (*o post sobre as GN fica para depois*). A lista não é grande... Lembrei de cara da Claudia LaSalle de Macross, a única mulher realmente negra que me lembro de ter visto em um anime até mais recentemente, e a única da qual me recordo com clareza. Mas daí pensei, por que falar somente de anime? Somente dessa personagem? Daí comecei a pensar, há a Valéria de Josie e as Gatinhas e a Diana de A Caverna do Dragão. Fora, claro, a Tenente Uhura de Jornada nas Estrelas. Antes que alguém pergunte sobre a Tempestade dos X-Men, eu digo que a conheci muito tarde, já no final da adolescência e ela não me marcou.
Se já é difícil termos personagens femininas realmente interessantes, que sejam pouco mais que um estereótipo (*a donzela em perigo, a pérfida que quer seduzir o herói, a irmãzinha super inteligente mas que nunca leva o crédito, etc.*), durante muito tempo foi praticamente impossível ver na ficção – animações, novelas, seriados, etc. – uma personagem que não fosse branca. No caso do Brasil, socialmente branca. Pegue as novelas no ar hoje e tentem achar alguma protagonista que não seja assim, socialmente branca. Pois é, ainda que na propaganda cada vez tenhamos mais rostos negros ou mestiços, nas novelas, a grande vitrine da TV brasileira, a coisa não é bem assim. Para se ter uma idéia, a próxima novela das sete da Globo terá domésticas como protagonistas... Qual é o perfil da maioria das empregadas (*assim no feminino*) domésticas em nosso país? Negra, mestiça, de origem nordestina... quem a Globo escalou para protagonistas? Thaís Araújo, Mariana Ximenes e Isabele Drummond. Para que as duas últimas sejam domésticas, só mesmo porque é protagonista de novela. Imagina se a Globo iria colocar três não-brancas como protagonistas? Tem que ser branca, loura, e com cara de modelo. Chega a dar vergonha, sabe? E, claro, tivemos o incidente vergonhoso do concurso de Miss Universo com a explosão racista contra as misses negras e, depois, contra a vencedora, a Miss Angola. Posso repetir que sinto vergonha, não é?
Enfim, a personagem negra mais remota que me lembro em desenho animado foi a Valéria de Josie e as Gatinhas no Espaço. Sim, assisti o spin-off antes. Adorava a Valéria por ela ter o meu nome, por ser inteligente, e por ser muito mais próxima do que eu era do que qualquer outra personagem na tela. Ainda que todas as personagens do desenho fossem um tanto estereotipadas (ruiva-linda, loira-burra, morena-pérfida), a Valéria estava lá mostrando que era possível ser inteligente, sensata e bonita em uma personagem só. Se eu pudesse escolher na época – tinha uns sete, oito anos – a personagem de desenho que gostaria de ser, seria a Valéria. Depois, maios tarde, com Caverna do Dragão veio a Diana. Só que a Diana parecia ser negra só para cumprir cotas, fora que outras personagens eram muito mais legais, como o Erik e o Presto... Quer dizer, os garotos eram mais legais que as duas meninas... Mas ela estava lá e era uma personagem também inteligente e que normalmente fazia a coisa certa.
Mais tarde, comecei a assistir Jornada nas Estrelas e ler sobre a série. Uhura de Nichelle Nichols era uma personagem muito importante na série. Não era a protagonista, afinal, a bola ficava muito mais tempo nas mãos do trio Spock-Kirk-McCoy, mas era uma presença subversiva e corajosa. Afinal, o primeiro piloto de Jornada nas Estrelas tinha sido rejeitado entre outras coisas por ter uma primeiro-oficial mulher, e a série estreou bem no momento em que a questão dos direitos civis e da derrubada das leis racistas estava em evidência. Para vender um produto é preciso torná-lo atraente. Gene Roddenberry sabia disso e simplesmente disse que poderiam ter "mais cor" na ponte de comando. Os produtores não imaginavam uma mulher negra, pensaram em cores mesmo, mas aí já era tarde. Para mim, é impossível pensar em Jornada sem Uhura. E como a própria Nichols disse uma vez em entrevista, ela não estava lá para "servir cafezinho" (*Ok, havia outras mulheres para fazer isso e todas eram brancas*), ela era uma profissional. E, apesar do beijo que trocou com Kirk em um famoso episódio, Uhura também não era namoradinha de ninguém, nem passou na mão do Capitão garanhão. Por isso, e por tantas outras coisas, ela foi muito importante. Curiosamente, uma outra tenente negra, profissional, com um visual moderno (*seu cabelo já era bem anos 1970*) e competente também apareceu em um único episódio. E não foi para beijar o Kirk. Jornada fez história, Uhura é parte dessa história e um avanço em termos de representação das mulheres negras na TV.
E, por fim, tempos a Claudia LaSalle (*ou Grant, se você viu Robotech*), para mim, a personagem negra que mais me marcou na animação até agora. Ela não era a protagonista, mas era uma mulher adulta, segura de si, a oficial mais competente da ponte, com senso de humor, capaz de dar conselhos certos e com uma vida sexual aparentemente ativa e satisfatória (*afinal, ela era noiva/namorada/whatever do Roy Focker*). Misa Hayase era uma das protagonistas, só que exatamente por isso, suas capacidades ficavam comprometidas, era a Claudia a personagem feminina da qual eu mais gostava em Macross. E ela tinha características étnicas muito bem marcadas. Ora, todo mundo que pesquisa ou mesmo lê mangá ou vê anime sabe que os japoneses muito aí para questões como essa, quem pensa que todas as personagens de anime são brancas, que só porque a Usagi/Serena tem cabelo amarelo ela é loura, está se enganando. Por isso mesmo, é curioso quando em Fushigi Yuugi a Miaka se espanta com Nakago e diz que ele é "louro de verdade", ou seja, não era "louro de mangá", por assim dizer. A Anthy de Utena também pode não ser negra, não colocaria minha mão no fogo por isso, não. A Claudia era realmente negra e muito bonita. Enquanto a Misa se embananava por conta do seu romance e as outras moças da ponte estavam lá para servir de alívio cômico, era a Claudia que estava firme ao lado do Capitão. Interessante que em Macross, apesar do comandante ser um homem, a segunda e a terceira pessoa na cadeia de comando eram mulheres, uma delas negra. A Claudia teve até figure, olha só.
Mais recentemente, outras personagens negras têm aparecido na animação japonesa, mas nenhuma me parece tão marcante quanto a Claudia. A personagem foi muito bem construída e serve de modelo positivo, não por ser perfeita, mas por não ser um estereótipo. E não estava na ponte para servir cafezinho. É importante que ela seja negra, e os japoneses dada a composição étnica do seu país, nem precisavam colocá-la assim, importante para quem assistia o anime fora do Japão, como eu. Hoje, há várias personagens negras na animação americana (*há uma cronologia com algumas aqui, incluindo animes*), seriados de TV étnicos que fazem muito sucesso aqui no Brasil, mas sei lá, acho que Claudia, Uhura e Valéria são uma tríade imbatível até agora. E mesmo a tentativa da Disney em fazer a sua princesa negra foi covarde, afinal, ela passa muito mais tempo como sapo do que como uma moça negra, ainda que Thiana tenha muitas virtudes.
É isso. Queria escrever alguma coisa sobre a data. Sei que foi um texto beeeem confuso, mas não consegui amarrar melhor as coisas. Espero que vocês reflitam sobre o que é Dia da Consciência Negra, porque precisamos de uma data assim. Várias notícias saíram esses dias apontando para as desigualdades que se perpetuam no Brasil: a pobreza que é principalmente negra e feminina; as crianças negras (*especialmente meninos*) que ninguém quer adotar; a repetência e evasão escolar que é maior entre crianças negras; a perseguição aos cultos afro-brasileiros; etc. É muita coisa a se mudar e combater. E este é um dia de luta, um dia para lembrar de Palmares e da luta de negros e negras pelo direito a gerir seus próprios destinos e construir uma sociedade diferente daquela que só os explorava.
Obs: gostaria de acrescentar a lista acima o AÚ, capoeirista do nosso amigo Flavio Luiz e o Eni Guimá de nosso eterno parceiro e amigo, Wanderline Freitas (BP).
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