sexta-feira, 8 de abril de 2016

A Legião de Mulheres nos Quadrinhos no Brasil

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Arte: Sarita
Texto escrito pela convidada e quadrinista Renata Nolasco - DELIRIUM NERD
Em 2010, a iniciativa Lady’s Comics se tornou o primeiro site no Brasil a tratar de mulheres e quadrinhos, simultaneamente, adotando o slogan HQ não é só pro seu namorado. O site foi tão significativo para a agitar o cenário que, em 2011, o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) teve a sua primeira mesa para tratar sobre o tema, com participação de Adriana Melo, Chiquinha, Erica Awano e Cris Peter.
Pulando para 2014, o Zine XXX, idealizado por Beatriz Lopes, se propôs a reunir os trabalhos de quadrinistas mulheres de todo o Brasil em uma coletânea de cinco zines, produzida de forma independente através de financiamento coletivo. Este projeto foi a cria de um movimento que aprendia rápido a andar e o resultado foi revolucionário: a aproximação das quadrinistas em um espaço autogerido por mulheres, que funcionou como um palco para a discussão acerca da publicação independente e quebra do mito da ausência de público, que até então era usado por profissionais da área para minar a produção feminina ao restringir sua capacidade criativa. O retorno dos fanzines e a alvorada do crowdfunding no Brasil tiveram um papel ímpar para alavancar a discussão da invisibilidade do trabalho da mulher quadrinista no mercado e expor a problemática da disseminação do discurso que “não há mulheres produzindo quadrinhos”.
Mas como pode não haver mulheres produzindo quadrinhos se nessa lista organizada por Aline Lemos já são mais de 350 nomes?
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“A Legião de Mulheres nos Quadrinhos no Brasil” é uma lista colaborativa organizada por Aline Lemos com os nomes de portfólio de todas as quadrinistas do Brasil. A lista já conta com mais de 350 nomes. Acesse em: Lista
Para Caitlin McGurk, curadora da Biblioteca Billy Irelandas, as mulheres estão presentes na produção das histórias em quadrinhos há mais 100 anos, mas o seu papel na indústria era limitado pelo contexto sociocultural em que estavam inseridas. O mercado ainda formado majoritariamente por homens tratou de demarcar a indústria como uma cena pertencente ao imaginário masculino, pois “as mulheres amadurecem cedo e abandonam os quadrinhos ” ou “as mulheres não gostam muito de quadrinhos mesmo”. Em resposta à invisibilização da produção delas, surgiram por todo o país publicações restritas à produção feminina como mecanismo de resistência.
As discussões trazidas por essas publicações promoveram intensas mudanças na forma como as histórias em quadrinhos são consumidas e, principalmente, produzidas, ao fazer recorte acerca do papel secundarizado da mulher na sociedade. As HQs então têm sido reinventadas pelas grandes editoras a partir das reivindicações do público, mas a potencialização desta mídia como agente de transformação social não veio da indústria tradicional, mas sim com o grande crescimento de mulheres produzindo e se autopublicando – muitas delas influenciadas pelas coletâneas exclusivas de e para mulheres, que pela primeira vez no mercado brasileiro colocaram o trabalho delas como protagonista.
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“Ei, por que não existem grandes quadrinhos feitos por mulheres?” (Link: Acesse aqui)
A popularização da cultura da publicação independente com a chegada de grandes sites de financiamento coletivo no país, em 2001, facilitou a autopublicação de muitas artistas que viram o seu trabalho minimizado pela mídia tradicional. O surgimento destes espaços autogeridos por mulheres propicia a liberdade de exposição da vivência feminina, uma vez que as artistas não precisam adaptar o seu trabalho para que se adequem a normatização da indústria. Sem falar que a popularização dos quadrinhos de baixo custo através dos fanzines estimula novas autoras a se aventurarem nessa mídia, ao trazer os meios de produção para bem pertinho. A máxima é: você também pode fazer quadrinhos.
A condição de invisibilidade se perpetuou por muitas décadas, pois o machismo forçava as autoras a assinarem seus trabalhos com codinomes masculinos ou neutros. Um exemplo é Nair de Teffé, a primeira cartunista do Brasil – também considerada uma das primeiras caricaturistas do mundo, que assinava seu trabalho com pseudônimo ambíguo: Rian. A invisibilização da artista acontece mesmo em caráter de homenagem, pois a escola de arte batizada em sua memória não possui o seu nome. É o “Centro Artístico Rian”, não Nair.
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Nair de Teffé
Nair de Teffé As mulheres representarem 48% do público que consome quadrinhos no mundo, e esse pouco (às vezes nenhum) reconhecimento na área é uma barreira que se auto fortalece, pois se elas não são reconhecidas pelo seu trabalho, abandonam a cena. No Brasil, o prêmio Troféu HQMix tinha apenas 13% dos trabalhos premiados feitos por mulheres. No Festival d’Angoulême, na França, nenhuma mulher foi indicada.
Linda Nochlin vai além dos quadrinhos em seu artigo “Why have there been no Great Women Artists?” (1971), onde expõe os fatores que influenciam a exclusão do trabalho da mulher na história da arte. Segundo Nochlin, para a mulher é atribuído papel de musa, enquanto para o homem fica o protagonismo da criação. A idealização do artista enquanto gênio desponta em destacar a inaptidão das mulheres para a pintura ou a música, uma vez que todos os gênios são homens. No entanto, este gênio em absoluto é inato: as mulheres não se destacaram na história da arte porque eram desencorajadas a se aperfeiçoar e a ingressar em escolas artísticas, sua dependência econômica e contexto sociocultural na época as prendia em uma inércia onde não havia o incentivo para que se desprendessem do papel de musa e assumissem os meios de produção artística. é válido ressaltar, também, que a categorização de tudo que conhecemos como arte foi feito sob a perspectiva masculina.
Sabemos que as mulheres sempre fizeram parte da produção dos quadrinhos e muitas editoras possuem mulheres em funções de chefia, mas a indústria continua sendo influenciada por determinações que vão além delas. A hegemonia patriarcal impôs ao longo dos anos os critérios de avaliação que nos induz a rotular o que é um bom quadrinho, o que é um mau quadrinho, o que vendável, o que é arte, e o que não é. Dos movimentos de contracultura que exaltam o falo como transgressor, até a arte clássica que usa o nu feminino como expressão da sexualidade do artista, as escolas e gêneros artísticos são declarações validadas por homens, visando uma recepção por parte de outros homens.
A indústria que valida o gonzo como transgressor é a mesma que rotulou a história em quadrinho autobiográfica como gênero feminino até que os homens começassem a produzi-las também – o que automaticamente as elevou ao patamar de arte. Essa indústria é a mesma que se recusa a publicar mulheres, responsável por engavetar o seu trabalho e pô-lo em caixas como “muito pessoal”, “muito fofo” e “pouco vendável”, reproduzindo mecanismos de inferiorizar tudo aquilo que é associado socialmente ao gênero feminino.
Essas nova leva de quadrinistas no Brasil sabe disso e estão alinhadas ao discurso feminista de apropriação da fala e dos espaços, e reconhecendo o poder da representatividade midiática como transformador da realidade, elas começaram a produzir quadrinhos sobre a sua própria visão de mundo. Neste lugar de fala, a mulher não é apenas a produtora de conteúdo, mas também dita os parâmetros de sua produção e tem plena autonomia para se distanciar dos estereótipos impostos pela mídia. Ela é, também, a principal consumidora, o que não apenas permite mas também incentiva a sua identificação imediata com os quadrinhos.
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Algumas das integrantes do stand Venus Press no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) 2015. O primeiro stand do evento a ser composto exclusivamente por mulheres.
Estamos vivendo um momento ímpar para a realização de quadrinhos independentes feitos por mulheres no Brasil. A era delas chegou. 

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