Por Milena Azevedo - GHQ
Para
retratar as agruras do sertão nordestino, só mesmo alguém que conviveu
de perto com essa dura realidade, na qual o sol marca impiedosamente
tanto o chão quanto a pele daqueles que estão sob seus raios.
Na
década de 1930, dois escritores narraram, de forma épica, a tenacidade e
a fé dos sertanejos retirantes, que deixavam o Nordeste em prol de uma
vida abundante nas regiões Sudeste e Norte: Rachel de Queiróz, em O Quinze, seu romance de estreia, publicado em 1930, e Graciliano Ramos, em Vidas Secas, de 1938.
Se
o último ganhou uma primorosa adaptação cinematográfica pelas mãos de
Nelson Pereira dos Santos, em 1963, o primeiro acaba de ser adaptado aos
quadrinhos por Shiko (88 páginas, colorido, R$ 29,90),
que respeitou o texto da autora e, ainda assim, teve personalidade para
deixar sua marca nele.
A necessidade
de um bom inverno, a estação das chuvas no Nordeste, faz o sertanejo
ser um grande devoto de São José. A sabedoria popular diz que se a chuva
não vem no dia 19 de março, a colheita e o gado minguarão.
Quando
não cai uma única gota d’água durante um mês ou mais, é prenúncio de
seca. E no ano de 1915 ocorreu a primeira grande seca do Século 20, no
Brasil.
Em O Quinze, são mostradas as diferentes trajetórias de sertanejos, moradores de Quixadá, interior do Ceará, naquele fatídico ano.
Se
Dona Inácia solta o gado e as galinhas e parte com a neta Conceição
para Fortaleza, Vicente compra algumas reses e resiste em Quixadá até o
fim, enquanto Chico Bento e sua família migram a pé para tentar a sorte
no perímetro urbano.
O olhar triste
de uma vaca moribunda para a família de Chico Bento indica que a jornada
não será fácil, pois o cenário conclama a morte.
Na
capital, Dona Inácia não entende a neta, que prefere os livros à
tradição. Isso porque Conceição carrega o idealismo socialista, chegando
a doar seu salário para ajudar os retirantes nos campos de
concentração, os currais de gente onde famílias são amontoadas pelo
governo, agarrando-se à fé em meio à miséria.
E
o amor não declarado entre Vicente e Conceição, um vislumbre de
felicidade na trama, padece sob fofocas infundadas, tornando seus
corações tão áridos quanto à paisagem.
Assim
como Rachel de Queiróz, Shiko é nordestino, nasceu em Patos, interior
da Paraíba, e somente aos 20 anos se mudou para João Pessoa.
As
reminiscências de menino e a sensibilidade artística fizeram-no
produzir um belíssimo álbum, ao registrar com traço realista e
pinceladas em aquarela, as expressões, os trejeitos, as cores (que se
revezam entre vermelho-cobre, amarelo e algumas porções de azul), os
ângulos e enquadramentos (fechados, em sua maioria, dando um tom
intimista à obra), a fumaça do cigarro que projeta lembranças, e os
delírios causados pela mistura de insolação e fome daqueles forçados a
perder o pouco que tinham, trilhando caatinga adentro para garantir a
sobrevivência dos seus.
Numa edição
que traz contexto histórico, biografia dos autores e curiosidades sobre a
adaptação do romance para os quadrinhos e uma das melhores capas do
mercado de quadrinhos nos últimos anos, a Ática demonstra todo o esmero que está tendo com o selo Agaquê, criado em 2011.
Não bastasse o Agaquê ter publicado excelentes graphic novels europeias, a adaptação de O Quinze
é a primeira do selo a trazer autores nacionais, muito bem escolhidos,
diga-se de passagem, diferenciando-se de muitas outras feitas com
oportunismo, primando pela quantidade e comprometendo a qualidade.
(Resenha publicada no Universo HQ)
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