Com o aumento do número de leitoras de HQs e maior representatividade das personagens femininas , não seria hora de abandonar o padrão peitão?,
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bandonar o padrão
Por José Abrão - Judão
Quando William Moulton Marston criou a Mulher-Maravilha em 1941, ele tinha um objetivo muito nobre. O psicólogo ficou preocupado que todos os grandes heróis eram homens e as mulheres não teriam em quem se espelhar. Porém, rapidamente a Mulher-Maravilha fez sucesso, só que não pelas mulheres, mas pelos garotos que achavam seus traços atraentes, além de ser sexy haver uma heroína. Cheia de boas intenções para combater o machismo, a princesa Diana acabou vítima dele.
Um exemplo prático é o reboot da DC, que mudou alguns designs dos personagens e, automaticamente, gerou o RAGE de diversos fãs. Superman perdeu a cueca, Mulher-Maravilha teve calças e a Poderosa perdeu o famoso decote e ganhou uma roupa de corpo inteiro.
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bandonar o padrão
Por José Abrão - Judão
Quando William Moulton Marston criou a Mulher-Maravilha em 1941, ele tinha um objetivo muito nobre. O psicólogo ficou preocupado que todos os grandes heróis eram homens e as mulheres não teriam em quem se espelhar. Porém, rapidamente a Mulher-Maravilha fez sucesso, só que não pelas mulheres, mas pelos garotos que achavam seus traços atraentes, além de ser sexy haver uma heroína. Cheia de boas intenções para combater o machismo, a princesa Diana acabou vítima dele.
A personagem precisou de décadas para conquistar o espaço que tem hoje, mas assim que a nova interprete dela nas telonas foi anunciada, recebemos uma torrente de mimimi porque a Gal Gadot é magrela. O físico, a aparência, permanece muito importante em todo o universo dos super-heróis, mas a coisa é muito mais pesada para as mulheres.
Só que isso parece estar mudando (de forma bem devagar, mas está) para as super-heroínas e para as personagens femininas nas HQs de super-heróis. A Capitã Marvel agora é Carol Denvers, que abandonou seu maiô fetichista dos tempos em que era chamada Miss Marvel por uma roupa de corpo inteiro e aventuras espaciais muito mais interessantes. E a nova Miss Marvel é uma adolescente islâmica em trajes nada sexualizados.
Isso aconteceu principalmente devido ao aumento considerável de leitoras das HQs e da inserção de mulheres neste mercado de trabalho, até então ainda mais machista e Clube do Bolinha do que hoje. Mas um fator incômodo ainda permanece: o traço.
O PADRÃO PEITÃO
O padrão super-sexualizado e de objetificação das mulheres no mundo mainstream dos super-heróis ainda permanece firme e forte a ponto de que mudam-se as caras, mas todas têm os mesmos peitões. O assunto foi levantado recentemente na coluna da artista Kelly Thompson no site especializado CBR com o sugestivo título de: She Has No Head! Ou “ela não tem cabeça”, criticando exatamente a forma extremamente repetitiva e sexual com que essas personagens são desenhadas.
Para entender isso, o JUDÃO conversou alguns desenhistas. Muito se culpou de que o padrão peitão surgiu nos anos 1990, época em que os traços super exagerados da então recente Imageeram sensação/sucesso de vendas e caras como Rob Liefeld eram considerados gênios.
Foi o que disse a quadrinista Adriana Melo, conhecida por suas mulheres sempre sensuais: “Quando eu comecei, vinte anos atrás, tinha uma orientação clara e escancarada sobre desenhar garotas de uma forma mega, ABSURDAMENTE sexy, numa tentativa de fisgar o leitor por isso. E essa era a direção pra todo mundo no início, que tinha como foco editoras pequenas (mais fáceis de entrar), onde o foco era trazer leitores pelo excesso, fosse de violência, fosse pela sexualização das personagens. Numa editora grande sempre tem uma preocupação maior com o storytelling, enquadramento, dinamismo da cena e estilo”.
O pensamento é muito parecido com o de outro artista brasileiro que trabalha nos EUA, o Mike Deodato. “Os super-heróis, masculinos ou femininos, são, em geral, idealizações do ser humano: mais fortes, mais bonitos. Quando eu comecei minha carreira nos EUA havia uma forte influência do estilo Image, além de todo o exagero contido em quase tudo nos anos 90, então tanto os homens quanto as mulheres nos quadrinhos de super-heróis eram, com poucas exceções, extremamente sexy, hiper-musculosos e exageradamente violentos. Os quadrinhos nos anos 90 refletiam a sua época”.
Aí você me vira e fala, mas Zé, o Deodato falou uma boa aí, os homens também sempre foram grandalhões – o Capitão América do Liefeld que o diga -, não é justo falar que há desigualdade. Calma, Pequeno Gafanhoto, aí é que está o X da questão: estes personagens não são vistos, nem tratados da mesma forma. Basta dizer que o Batman nunca teve que estrelar uma capa igual Catwoman #0, que teve que ser refeita por quebrar a coluna de Selina Kyle para incluir peito e bunda numa mesma imagem.
Capa original de Catwoman #0 à esquerda e sua correção à direita
Deodato resgata a ideia que os heróis das décadas de 30 e 40 eram inspirados na mitologia grega, sempre altos, fortes, viris, representantes da masculinidade. Já a mulher começou desde sempre como uma donzela em perigo, frágil, como as namoradinhas de Flash Gordon e companhia, ou senão como umafemme fatale, sexy e terrível, como viria a ser a Mulher-Gato, por exemplo. “A diferença é que, mesmo ambos os gêneros tendo sido objetificados ao longo dos anos, a mulher era normalmente vista como figura frágil, que precisava ser resgatada pelo herói. Foi nos anos 90 que a mulher, em geral, passou a ter mais poder nos quadrinhos, deixando de ser a ‘donzela em perigo’ e passando a lutar em iguais condições à dos homens”.
Foi o que ele disse, mas condições iguais? Será mesmo? Essa foi toda a proposta da Mulher-Maravilha e acabou não dando certo. A colorista brasileira indicada ao Prêmio Eisner (o mais importante das HQs dos EUA) Cris Peter tem uma visão mais prática dos fatos. “Realmente existe muita coisa errada com a representação da mulher nos quadrinhos mainstream — a maioria das revistas independentes foge dessa crítica, ainda mais porque muitos títulos estão sendo publicados por autoras mulheres e autores preocupados em mostrar mais do que beleza física”, diz a quadrinista.
Ela continua: “O mainstream está refém de um padrão bastante restrito de personagens femininas. Elas têm sempre o mesmo rosto, mesmo corpo e, muitas vezes, mesma personalidade, normalmente vazia. Ainda temos muitos outros problemas, como o papel delas nas histórias. A desculpa dos editores é dizer que o público foco dessas HQs são homens, pois eles são os maiores consumidores de quadrinhos. Será que isso é verdade? Será que, se isso for verdade, é porque mulheres não se interessam em comprar HQs nas quais não são representadas? Acho que muito pouco mudou. Ainda vejo tudo muito igual, porém algumas coisas andam modificando sim. Na Marvel, por exemplo, ando percebendo uma preocupação maior, a começar com a contratação de roteiristas mulheres”.
Existe muita coisa errada com a representação da mulher nos quadrinhos mainstream.
Cris aponta que um dos maiores problemas do machismo é que muita gente não sabe o que é – nem que está sendo machista. “Ainda tem muita personagem irrelevante nas HQs, muitas tratadas como acessórios”, diz ela, que vê o problema como um tipo de vício dos roteiristas e editores, algo que ainda vai demorar a desaparecer. “As mulheres estão presas dentro de um clichê. Eu realmente acredito que o problema maior é a falta de conhecimento do que é machismo. Muitos desses editores e leitores podem dizer com honestidade que eles não são machistas, mas, ao mesmo tempo, o primeiro reflexo deles é dizer que o gênero super-heróis não é coisa de menina. Que mulheres não gostam de ação e coisas explodindo. Eu estou aqui pra dizer que eu sou uma mulher que AMA filmes de ação com explosão e tiros!”.
De um lado, a Poderosa pós-reboot da DC e sem decote. Do outro, o retorno do visual clássico da heroína
Um exemplo prático é o reboot da DC, que mudou alguns designs dos personagens e, automaticamente, gerou o RAGE de diversos fãs. Superman perdeu a cueca, Mulher-Maravilha teve calças e a Poderosa perdeu o famoso decote e ganhou uma roupa de corpo inteiro.
Agora presta atenção: desses três personagens que perderam suas “marcas registradas”, em quais a DC voltou atrás?
Pois é. O argumento da DC seria de que o Superman é muito mais do que sua cueca por cima da calça, mas voltaram atrás rapidinho quanto às mulheres — a Mulher-Maravilha perdeu as calças antes do início efetivo do reboot e o decotão da Poderosa voltou depois de algumas edições. RB Silva, que atualmente desenha World’s Finest, revista na qual está a Poderosa, afirma que a mudança “ter sido um apelo dos fãs. Os seios da personagem são um símbolo, uma vez que tiram isso, ela deixa de ser a Poderosa”.
E aí está: se o Superman perde a cueca, ele não deixa de ser o Supinho. Já a Poderosa… Isso levanta dois problemas: ou a DC não se importa com essas personagens ou a Poderosa realmente só é o seu decote, uma personagem 100% objeto. O peitão, então, não seria algo já batido? “Exatamente. E penso que vai ser assim por muito e muito mais tempo. Na maior parte do tempo, é o que eles querem ver”, diz Silva.
MULHERES NAS GELADEIRAS
O problema da representação, por sua vez, é tão sério que já virou até tema de pesquisa e sites. A hoje famosa roteirista Gail Simone criou, em 1999, o site Women in Refrigerators para discutir e também manter uma lista atualizada de personagens femininas mortas, aleijadas ou feridas, muitas vezes brutalmente, como recurso de roteiro — principalmente em revistas de heróis masculinos. O nome do site inclusive veio do então gibi do Lanterna Verde Kyle Rayner, que encontrou a namorada morta dentro de uma geladeira. O site reúne opiniões de diversos artistas e roteiristas, assim também como uma lista enorme de personagens mulheres que passaram por isso.
O site repercutiu e chamou a atenção, gerando até o termo Síndrome da Mulher na Geladeira para denominar toda vez que uma personagem é morta como recurso de roteiro e o herói homem sai intacto. Aqui no Brasil também existe o site Lady’s Comics, fundado pelas quadrinistas Mariamma Fonseca, Samanta Coan e Lu Cafaggi para registrar as conquistas das mulheres nas HQs e debater o assunto.
A representatividade também foi tema do interessante livro Mulher ao Quadrado – As Representações Femininas nos Quadrinhos Norte-Americanos: Permanências e Ressonâncias (1895-1990), da pesquisadora da UnB Selma Regina Nunes Oliveira. A conclusão dela é de que muito pouco ou quase nada mudou da namoradinha indefesa à Capitã Marvel.
Exemplos não faltam. Outro bom é o de Barbara Gordon ter voltado a ser a Batgirl. Em termos de personagem, foi uma regressão. Ela deixou de ser a experiente e fodona Oráculo pra voltar a ser uma personagem “inexperiente”. A Oráculo não só era um papel muito mais significativo como também representativo: era uma mulher e cadeirante que não era uma coitadinha, unindo duas minorias. Porém, colocar a ruiva na situação que todo mundo espera (ou seja, de defensora dos indefesos com roupa colada) resulta em mais vendas.
Óbvio, sexo vende, mas o meio dos HQs está sofrendo um boom de popularidade. Suas personagens femininas, como Capitã Marvel, Mulher-Maravilha e Viúva Negra estão atraindo mais atenção e leitoras do que nunca. Não seria hora de mudar?
Felizmente, os artistas concordam que o “padrão peitão” realmente já cansou, e apostam em mudanças dos próprios artistas para mudar as editoras, como explica Adriana Melo. “Com prazo apertado, a mão é a primeira a tentar ‘sabotar’ nosso próprio trabalho (sou testemunha ocular disso): sob pressão a mão adquire vida própria e começa a desenhar todo mundo com o mesmo rosto e corpo! Nessa hora é que a gente tem que respirar fundo, dar um passo atrás e impedir que esse vício de construção da anatomia se repita. Eu mesma resolvi me impor um período onde voltei a ‘escola’. Estou usando momentos vagos para estudar anatomia, corpo humano, aprender o nome dos músculos (coisa que nunca tinha achado necessário). Tentando variar meu próprio trabalho para evitar essa dita monotonia. Acho útil de tempos em tempos uma avaliação do próprio trabalho e procurar formas de melhorar”.
Exemplo do traço clássico do Rob Liefeld
Outro ponto em que concordam é que o público feminino e a discussão são fundamentais para mudar o estilo Liefeld de desenhar. “Não há público melhor para opinar a respeito do que precisa ser melhorado em uma HQ onde a personagem principal seja do sexo feminino”, afirma RB. “Muito já foi alterado JUSTAMENTE pelo barulho causado por elas. A alteração de conteúdo, uniformes etc. Acho válida a discussão do assunto e um dos meus blogs favoritos no Tumblr é o ESCHERGIRLS, voltado pra criticar exatamente exageros de anatomia, e esse é um link que sempre visito, como lembrete do que eu devo evitar. Mas devo ter pisado muito na bola nesse quesito, sou obrigada a assumir” admitiu Adriana.
“O público mudou e as editoras precisam acompanhar as mudanças. É muito importante. Cerca de 49% dos leitores de comics nos Estados Unidos é feminino”, comenta Deodato. Cris Peter completa: “A importância das leitoras é fundamental. Elas precisam apoiar as boas criações e criticar as ruins e principalmente, elas não podem desistir de ler quadrinhos”.
Todo homem heterossexual adora um belo par de seios, mas HQs não são só isso e não devem ser só isso – nem essas personagens. A verdade é que as coisas mudam, se desenvolvem. A indústria de HQs, inclusive a de super-heróis, está amadurecendo e nada seria mais justo do que seu desenho amadureça junto com os roteiros.
É hora de evoluir.
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